Touradas, Rusga e choques culturais no coração da América

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Nos anos 70, quando Milton Nascimento lançou canção com repetidos trechos “eu da América do Sul”, em tom de orgulho, ao dedicá-la para Lennon e McCartney – fundadores da banda The Beatles, também ressonava o amor pelas origens.

Isso porque, com o fim das duas grandes guerras mundiais, antes mesmo do período setecentista, os anos 50 tornaram o Brasil muito mais próximo do país que se transformava em uma potência mundial, os Estados Unidos. The Beatles vendia discos que falavam de amor e paz e ganhavam a adoração global.

Logo após a desintegração da banda, Milton lançou seu disco proclamando a latinidade. Com essa canção, ele demonstrou-se contra o movimento de desvalorização que tratava a cultura dos países da América do Sul como “lixo ocidental”. O cantor erguia ali a bandeira em favor de um regionalismo e auto-estima dos que lutavam por uma identidade menos norte-americanizada.

Cuiabá, não inerte aos conflitos mundiais desde o período, findou e recomeçou inúmeras guerras com o decorrer dos séculos – completa três em 8 de abril. Entre aflições e latentes convicções, o coração da América Latina sediou conflitos geopolíticos.

Na Rusga os tiros de prata matavam os traidores

Um dos episódios mais lembrados é o da Rusga, revolta articulada na madrugada de 30 de maio de 1834 no Campo do Ourique. Fez parte das rebeliões ocorridas no período regencial brasileiro.

A revolta reuniu cerca de 80 revoltosos, que tomaram, a mão armada com facas e espingardas carregadas de balas de prata, o quartel dos guardas municipais. O Campo do Ourique, até então, era palco de eventos culturais, inclusive para o entretenimento dos portugueses, como as touradas. Por ironia do destino, ou não, quase 75 anos depois, a sangria dos bois ou das gargantas cortadas cedeu seu espaço para o Centro Geodésico da América do Sul.

Foi demarcado por Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, em 1909. E lá há, até hoje, um monumento de 20 metros, que fica na frente da Câmara de Cuiabá – veja vídeo abaixo.

Para o historiador e pesquisador Pedro Félix, o fato de Cuiabá estar no centro da América Latina a preservou de mudanças culturais, mas nem por isso amenizou a possibilidade de resistências políticas dos nativos.  “Aqui é um lugar de conquistas, mas custou ter certa homogenia. Devido a existência de diferentes povos, haviam muitos conflitos de ideias”.

Para os nativos cuiabanos, a Rusga se justificou principalmente pela situação de opressão e abuso de autoridade por parte dos comerciantes estrangeiros, que ainda tinham todos os antigos privilégios, mesmo após a declaração da independência no século 19. Aquela também foi à noite com maior matança de portugueses que já havia ocorrido no Brasil até o momento, pois o movimento Farroupilha, que era munido das mesmas intenções, só aconteceria dois anos depois, em 1835.

“Depois da proclamação da independência do Brasil, surgiram inúmeros momentos liberais para instalar um governo com autonomia nas províncias. Apesar de nenhum dos revoltosos sofrer punição das autoridades, o clima de disputa política continuava a se desenvolver em Cuiabá. Em 1836, quando João Poupino Caldas (governou interinamente a Província de Mato Grosso) resolveu ir embora e deixar a província, ele foi morto com uma bala de prata”, descreve Félix. Na história de MT, dois governadores foram assassinados – saiba aqui.

Neste caso, tudo indica que algum revolucionário da Rusga se vingou. A bala de prata era usada para matar os traidores. O movimento, que aconteceu primeiro em Cuiabá, seguiu com conflitos em Poconé, Santo Antônio do Leverger e Chapada dos Guimarães.

No século 20, mais resistência e choques culturais

Guardada no centro da América, além de protegida, a cultura cuiabana é preservada como “tribal”. Seja no linguajar, que se aproxima das influências espanholas, ou na viola de cocho que, segundo um dos pesquisadores e defensores do instrumento, Habel Dy Anjos – em entrevista ao  em 2018, disse que a viola sempre o lembrou os medievais cochinhos árabes.

A socióloga Olga Lustosa não acredita que a cultura cuiabana tenha se perdido em meio ao processo de miscigenação dos povos. No entanto, pondera que é indiferente quando se trata de cultuar, relevar ou assimilar outra cultura.

Ela pontua este raciocínio analisando a história a partir da metade do século 19, quando a cuiabania teve ainda mais contato com o mundo exterior, através das navegações nos rios Paraguai e Prata. “Neste período foi quando Cuiabá começou a receber migrantes. A desejada pelos presidentes da província de Mato Grosso era certamente a europeia. Porém, esta se dirigia para as regiões mais desenvolvidas do império”.

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Homens alinhados para evento cultural, as touradas ocorriam como costume de Portugal

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No entanto, a pesquisadora menciona que os anos 70 tiveram ainda mais destaque nestes conflitos culturais e de reafirmação de ideias. Foi quando o governo brasileiro lançou o Plano de Integração Nacional.

Na prática, o plano servia para promover a expansão da fronteira econômica do país e, com isso, os colonos do Sul do Brasil, boa parte com descendência italiana, chegaram para ocupar espaços nas terras mato-grossenses.  “Uma vasta mistura de raças se instalou em Cuiabá. Trabalhadores, indivíduos desempregados e perseguidos. Na contemporaneidade, a cidade afrouxou seus limites e recebeu refugiados e migrantes em busca de colocações no trabalho e na sociedade”, explica.

O produtor cultural Ivam Belém, por outro lado, confessa ter vivido de forma intensa no período em que os sulistas se instalaram em terras mato-grossenses e acredita ter feito parte de um movimento de resistência. “Os cuiabanos mais tradicionais eram postos de lado ou caçoados entre os sulistas, o que gerava um incômodo e rivalidade entre os grupos”, lembra.

Para o ator, o orgulho de ser cuiabano precisava ser reafirmado para não cair no esquecimento. “Nossa cultura estava sendo inferiorizada e, aos poucos, consumida por outros que tornavam a ter privilégios”, reflete.

Rodinei Crescencio

Centro Geod�sico da Am�rica do Sul foi demarcado em 1909, 75 anos ap�s a Rusga

Centro Geodésico da América do Sul foi demarcado em 1909, 75 anos após a Rusga. A Capital de MT  passou a ser, desde então, o coração da América do Sul.

Fonte: RD News