Historiadores divergem sobre a verdadeira data da fundação de Cuiabá

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Uma historiografia diverge sobre a verdadeira data de fundação da capital do estado de Mato Grosso, estabelecida no século 20 por Dom Aquino Correa com anuência de intelectuais. Para que os 300 anos de Cuiabá fossem comemorados em 2019, é necessário entender as razões da celebração do bicentenário da capital mato-grossense, durante o governo Dom Aquino Corrêa, presidente do Estado em 1919. Isso porque a historiografia produzida sobre o nascimento do Estado diverge em vários pontos e isso é interpretado por diversos prismas.
Marcado por polêmicas e atos considerados egocêntricos, o segundo centenário despertou polêmica. O famoso bispo de Mato Grosso, com a Resolução nº 790, de agosto de 1918, decidiu alterar a data de fundação da cidade para que ela coincidisse com o aniversário de 25 anos da chegada da Missão Salesiana ao Estado. O que fez como o primeiro aniversário comemorado da capital ocorresse em sua gestão como presidente do Estado (1918-1922).
As comemorações do bicentenário de Cuiabá tiveram auxílio intenso da missão salesiana, da qual Corrêa era um dos principais líderes. Jesuítas e franciscanos também tiveram papel fundamental nas cerimônias comemorativas. Conforme jornais da época, os eventos custaram, ao todo, 534.867,799 réis aos cofres públicos.
No período, publicações da época relatam que a cidade enfrentava escassez de água. Ainda assim, Dom Aquino optou por utilizar recursos públicos para a comemoração. Tal fato gerou diversas críticas ao então governante da capital mato-grossense. Moradores contrários aos eventos do bicentenário contestavam os recursos utilizados por Corrêa e cobravam melhores condições para os habitantes da cidade.
 
Outra polêmica atividade durante a comemoração foi a alteração do nome da Avenida Couto Magalhães (um dos heróis da Guerra do Paraguai) para Avenida Dom Aquino Corrêa. O então representante do Estado chegou a mandar cunhar moedas comemorativas com o seu próprio rosto, o que gerou uma nova onda de críticas.
Dom Aquino justificava que as atividades relacionadas ao bicentenário de Cuiabá tinham como principal objetivo fazer com que os moradores da região se orgulhassem do lugar onde viviam. Ele afirmava que queria reforçar a sensação de pertencimento a Cuiabá e reacender a cuiabania. Foi o início da história de Cuiabá como conhecemos nos atuais livros de História.
Conforme o historiador Carlos Rosa, Dom Aquino se equivocou ao considerar que a cidade foi fundada em 1719. “Ele se baseou no trabalho de José Barbosa, considerado o primeiro historiador residente em Cuiabá. Barbosa escreveu várias obras, entre elas, uma que abordava as relações das povoações de Mato Grosso. Nesta, ele citou, sem citar fontes, que Cuiabá teria sido criada em 1719”, relata.
Rosa afirma que as informações de Barbosa teriam sido baseadas em pessoas que viviam em Cuiabá na época em que afirmavam que a cidade havia sido fundada. “Ele ouviu essas pessoas e tomou como verdade. Para justificar que Cuiabá foi criada em 1719, ele utilizou como argumento um documento que comunicava ao rei de Portugal que foram encontradas jazidas de ouro na região. Porém, esse documento não pode ser considerado uma comprovação de que a cidade foi fundada nesse período”, argumenta.
De acordo com Rosa, o ano de 1727 deveria ser considerado o período de fundação da capital. “Antes, Cuiabá era apenas um arraial, não era considerada uma cidade. Até que, em dezembro de 1926, o governador da capitania de São Paulo veio a Cuiabá para erguer outras vilas. Em 1º de janeiro de 1727, ele fez todo o processo, porque havia toda uma formalidade para criar Cuiabá. Ele também elegeu a Câmara de Vereadores para cuidar das escrituras”, explica.
Além das críticas temporais sobre a comemoração do bicentenário de Cuiabá, Rosa também relata que o ato ignorou figuras importantes para a fundação da cidade. “A maior homenagem que Cuiabá deveria ter recebido era a de se respeitar a dignidade de todos que nela viviam, não apenas uma parcela da população. Foram homenageados somente os paulistas e os bandeirantes, como se somente eles tivessem criado Cuiabá. Isso foi errado. Várias etnias, que foram mortas ou dizimadas, também colaboraram com a cidade. É importante lembrar os indígenas e também os africanos e seus descendentes, que foram tratados com mãos de carrasco. Existiria Cuiabá sem eles?”, indaga.
A questão referente à fundação da capital mato-grossense é polêmica e perdura por anos. Ainda assim, a possibilidade de alteração na data da comemoração nunca foi cogitada por representantes do Poder Público. “Essa data já foi sacramentada por lei oficial, mas temos o direito de discordar. Eu discordo, pois para mim Cuiabá foi fundada em 1927”, diz Carlos Rosa.
Sobre figuras que deixaram de ser destacadas no bicentenário, ele espera que as mesmas sejam cada vez mais lembradas nas comemorações relacionadas à cidade. “É uma coisa que acho que vai levar um tempo ainda para ser ensinada nas escolas. Mas já é possível encontrar trabalhos de graduação, dissertação de mestrado e teses de doutorado a respeito das pessoas que contribuíram para a criação de Cuiabá, como negros e indígenas, que antes eram esquecidas”.
A construção da narrativa histórica
Entre os destaques das comemorações do bicentenário estava a inauguração do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHG-MT). “A inauguração do Instituto Histórico ocorreu no Palácio da Instrução, sua antiga sede, e contou com a participação de grande público, sendo os hinos e peças musicais entoados pelas alunas da Escola Normal Pedro Celestino, assim como pelas alunas da Escola Modelo, futuro Grupo Escolar Barão de Melgaço”, explica a atual presidente do IGH, Elizabeth Madureira Siqueira.
A cerimônia de inauguração do instituto teve início às 19h, na data em que foi comemorado o bicentenário de Cuiabá. Dom Aquino Corrêa abriu o evento, com o auxílio de seus secretários, ajudantes e outras autoridades da capital. “O exímio senhor Dom Aquino Corrêa, que é também presidente do Instituto, abriu a sessão, proferindo substanciosa oração, tendo por tema as palavras ‘Pela Pátria conhecida e imortal’, arrancando por vezes o auditório e recebendo, ao terminar, calorosas palmas e aplausos de toda a seleta assistência”, narra trecho de jornal da época.
Conforme Elizabeth Siqueira, o Instituto Histórico foi criado com a finalidade de reunir e divulgar fontes e escrever sobre a história e a memória de Mato Grosso. “Até hoje a instituição persegue esse lema”. Segundo a presidente da entidade, atualmente o local abriga diversos estudos dedicados ao Estado, de diversas vertentes.
“Temos trabalhos feitos por pesquisadores independentes, mas de reconhecido saber, em áreas como história, geografia, etnologia, antropologia, jornalismo e meio ambiente. Esses estudos são feitos por pesquisadores independentes, que ao lado de um volume expressivo de doutores, mestres e especialistas, ligados a instituições de nível superior, pesquisam e escrevem sobre a trajetória pretérita e atual do Estado”, diz.
Sem fins lucrativos, a instituição privada sobrevive até os dias atuais e comemora 100 anos no aludido tricentenário da capital. “O instituto sobrevive pela parca contribuição de seus membros, mas necessitamos de apoio dos governos estadual e municipal, pois temos contribuído para contar e revelar o percurso e a memória de Mato Grosso”, pontua Siqueira.
Dom Aquino Correa
Francisco Tomás de Aquino Corrêa nasceu em 2 de abril de 1885, em Cuiabá. Filho de Antônio Tomás de Aquino e Maria de Aleluia Gaudie Ley Correia, Dom Aquino nasceu em uma família considerada sem muitas condições financeiras. Estudou questões religiosas desde a infância, quando se apaixonou pelo tema. Aos 18 anos, foi para o Seminário da Conceição.
Em sua carreira religiosa, também integrou o Noviciado dos Padres Salesianos de Dom Bosco, em Cuiabá. Tornou-se sacerdote em 1903. No ano seguinte, foi para Roma, onde iniciou seu doutorado em teologia, completado em 1908. Em janeiro de 1909, tornou-se presbítero. Posteriormente, retornou ao Brasil.
Em Cuiabá, tornou-se diretor do Liceu Salesiano de Cuiabá. Em 1914, deixou a função após ser escolhido para ser titular da Diocese de Cuiabá, sendo designado pelo Papa Pio X. Na igreja, ocupou outras diversas funções ao longo da vida e foi bispo de Mato Grosso.
Em 1917, Dom Aquino, então bispo do Estado, foi escolhido pelo governo de Venceslau Brás, então presidente do Brasil, como governador de Mato Grosso, cargo que ocupou de 1918 a 1922, deixando a função aos 32 anos.
Durante sua gestão, foi o responsável por criar espaços como a Academia Mato-grossense de Letras e também o Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, do qual se autointitulou presidente perpétuo.
Dom Aquino também escreveu diversas obras literárias. O seu primeiro livro, intitulado “Odes”, foi publicado em 1971. Entre suas obras também está o livro de poemas “Terra Natal”, no qual trouxe textos que exaltavam Mato Grosso e o Brasil. Ele chegou a ocupar a cadeira 34 da Academia Brasileira de Letras.
Uma das principais características de Dom Aquino era a capacidade oratória dele. Tal capacidade foi fundamental durante toda a sua carreira religiosa e também na vida pública, funções que acabaram se misturando durante a carreira. Sacerdote, arcebispo de Cuiabá, poeta, orador sacro e político, Dom Aquino é considerado uma das mais relevantes figuras históricas de Mato Grosso. Morreu em 22 de março de 1956, em São Paulo, e seu corpo foi trasladado e enterrado no jazigo da Catedral Metropolitana de Cuiabá.
Os povos esquecidos na formação de Cuiabá
Os dois grupos humanos responsáveis por construir Cuiabá, indígenas e negros, são omitidos da narrativa cotidiana da história desde quando esta começou a ser escrita, concordam os quatro intelectuais ouvidos ou consultados pelo Circuito Mato Grosso para falar um pouco de como estes resistiram e mantiveram suas identidades, vivências e saberes ao longo dos anos, assim como os principais locais onde eles acabaram por se concentrar nos primeiros anos de abolição, e também seus descendentes. Esses bairros ou residências, na região central da cidade, eram vistos com maus olhos pela elite: literalmente, eram lugares de gente indesejável.
Pontos esses (quase um século e meio depois) em novo processo de desvalorização, devido à concentração dos novos socialmente indesejáveis – os dependentes químicos, notadamente nas regiões ao longo da Prainha, o largo do Rosário e seu entorno – o Beco do Candeeiro e o Morro da Luz, mas também grande parte dos bairros Baú (onde também acabaram por ir morar paraguaios do pós-guerra, chegando mesmo a formar uma vila paraguaia por ali) e do Araés.
Todos esses lugares são historicamente abrigo das camadas menos favorecidas, como se sabe por estudos e estatísticas, majoritariamente negras e descendentes de indígenas e/ou fruto da miscigenação entre eles.
O historiador e professor da UFMT Carlos Alberto Rosa mencionou a existência de uma concentração de negros nos bairros em volta da Praça da Mandioca e do Largo do Rosário no século XVIII em Cuiabá. Ele é citado pelo também historiador Antutérpio Dias Pereira em seu “O Viver Escravo em Cuiabá/MT: Relações, Sociais, Solidariedade e Autonomia (1831-1888)”.
Para a antropóloga Edir Pina Barros, um processo de invisibilização gradativo e antiquíssimo, pois toda a Baixada Cuiabana constitui território histórico Bororo. A origem do nome do rio Cuiabá, da cidade e adjacências situa-se dentro do campo linguístico da etnia Bororo, gente que habita este pedaço de mundo há pelo menos 7 mil anos ou mais segundo outras pesquisas arqueológicas.
Além deles, outros povos chegaram a Cuiabá no decorrer dos tempos, como os Paiaguás e Terena, habitantes do que hoje é Mato Grosso do Sul. “Estes chegaram a ter uma aldeia na região do Porto. Por que o palácio do governo se chama Paiaguás, quando se encontra em pleno território do povo Boe-Bororo, objeto de várias chacinas?”, frisa Pina Barros.
No decorrer dos tempos, outros povos passaram a ter Cuiabá como centro de referência, sobretudo após a criação da Diretoria de Índios de Mato Grosso, em 1846, a exemplo os Bakairi e Paresi.
“Hoje a cidade de Cuiabá é multiétnica, pois, além dos afrodescendentes, tem-se a presença de alguns Terena, Paresi, Bakairi, Guató e Bororo, dentre outros, vivendo dispersos ou concentrados em alguns bairros, mais notadamente Paresi e Bakairi. Isto sem falar em sírios e libaneses”, continua a antropóloga, cujo livro “Os filhos do Sol: História e Cosmologia na Organização Social de Um Povo” foi indicado ao Prêmio Jabuti.
Os afrodescendentes, ainda conforme Pina Barros, se fizeram presentes desde o período colonial em toda a Baixada Cuiabana, quando começaram a ser trazidos já a partir do momento em que uma das bandeiras descobriu ouro onde hoje é o bairro de São Gonçalo Beira-Rio e cuja descendência ali residente parece sintetizar essa noção de Cuiabá como centro de convívio e resistência de negros e índios ao jugo da dominação branca. A vasta maioria descende de um ou dos dois grupos étnicos.
“A construção de um espaço negro dentro da cidade não pode ser menosprezada, porque foram necessários acordos, negociações e acomodações por parte dos negros, para conseguirem esse lugar centenário. Eles conseguiram isso através de uma relativa autonomia conquistada por meio de barganhas, acomodações, negociações e até transgressões, como frequentar espaços considerados não próprios para eles, e o exercício de atividades remuneradas ou de troca. Tudo forjado nas relações orgânicas entre senhores e escravos”, defende Antutérpio Dias Pereira.
Essa autonomia, continua Dias Pereira, se caracteriza pela mobilidade dos escravos pelas ruas da cidade. O morar em si era importante, mas a mobilidade conquistada, principalmente pelo escravo de ganho ou de aluguel, determinou os rumos da autonomia cativa. O escravo era responsável pelo seu sustento e por isso ele precisava andar pelas ruas em busca do seu sustento e em alguns casos também de sua família. Por isso é que não se pode estranhar que ruas, praças e fontes de água fossem pontos preferenciais de encontro deles.
Comportamentos coletivos, como ações criminosas em conjunto, faziam parte da intrincada teia de relações sociais entre senhores e escravos. “A cooperação de cativos e livres para o cometimento de delitos comprova a existência de um conjunto bastante complexo de ligações entre grupos sociais distintos (escravos e libertos), os quais acabavam por se associar para diminuir suas necessidades econômicas imediatas”.
Outra historiadora, a doutora Luiza Ricci Volpato, autora de “Cativos do Sertão: Vida Cotidiana e Escravidão em Cuiabá em 1850-1888”, disse ao Circuito que não conhece registro dessa associação criminosa entre os escravos, mas fez a ressalva de que seu recorte termina no ano da abolição. Reconhece, porém, que o cotidiano de resistência durante a escravidão tecia um cotidiano intrincado, em que o objetivo era escapar das punições e constituir suas vidas de maneira a enfrentar, à maneira deles, a vigilância dos senhores e seus capitães e capatazes.
A explicação dela para o processo de invisibilidade por que passaram aqueles que ofereciam a maior parte da mão de obra do estado e da capital é, pura e simplesmente, a vontade das classes dominantes, brancas, daqueles tempos, num movimento social ainda hoje presente e cujos efeitos se fazem sentir. “Quem conta e registra a história – e isso começa quando registram a chegada dos brancos por aqui – é sempre quem detém o poder, o controle. Escrevem aquilo que é do interesse deles”, lembra.
Partindo do cruzamento do trabalho dela com o de Antutérpio, os de Edir Pina Barros e de outra especialista, a professora doutora Tereza Martha Presoti, dá para perceber o desejo de separação radical dos grupos considerados indesejáveis dos brancos. Assim, os negros eram sepultados na igreja de Nossa Senhora do Rosário, os pardos, na Igreja da Boa Morte, os brancos, na Irmandade do Espírito Santo, localizada na Igreja Matriz.
Esses escravos trazidos para cá eram predominantemente de etnia Banto (52%) com maioria Benguela, seguida por Congo, Angola, Cambunda, Cassange, Monjolo, Rebolo e Moçambique. Mas havia também presença de Sudaneses (25%), com maioria Mina e raros Nagô; bem como islamizados (4%), particularmente Haussá. Os restantes 19% eram apenas identificados por notações como “Africano” ou da “África”, complementa Pina Barros.
Para terminar, Tereza Martha Presoti lembra o nome do córrego da Prainha, dado pelos Boé: Água de estrelas, e do próprio rio Cuiabá: lugar de pesca com flecha arpão. “Isso remete a um lugar de memória, de relação com a natureza, de pesca, abundância de peixes, águas cristalinas, e que hoje é um esgoto. É uma reflexão importante que vem dos indígenas que povoavam este lugar”.
A Cuiabá de 1.300 anos
Negligenciados por grande parte da historiografia e também na atual comemoração de aniversário de Cuiabá, os povos indígenas de Mato Grosso pedem que a história da capital seja revisitada. Eles pedem que seja considerado o passado da cultura que deu nome a cidade e tem suas raízes nos povos Bóe, como se autodenominam os Bororos, também conhecidos como Coroados, Exerais ou Coxiponés.
Segundo o arqueólogo Jorge Eremites, em estudos paleoambientais e arqueológicos, as primeiras ocupações indígenas podem ter se dado no início do Holoceno, por volta de 9.000 A.C. (Antes de Cristo), quando pescadores-caçadores-coletores devem ter se estabelecido pela primeira vez na planície pantaneira.
A arquiteta-arqueóloga Maria Clara Migliacio enriquece a compreensão do processo constitutivo de diversidade cultural que caracteriza o Chaco e o Pantanal. Sua pesquisa demonstrou a complexidade e a particularidade tecnológica da tradição cerâmica Descalvados, da região do Pantanal de Cáceres (220 km de Cuiabá), que trazem datações de até 4 mil anos.
Também há controvérsias quanto às mais antigas datas de ocupação da América do Sul. Em sítios, como a do abrigo Santa Elina (em Rondonópolis) a Missão Franco-brasileira encontrou vestígios de ocupação humana com 23 mil anos A.C e no sítio conhecido como o Abrigo do Sol foram encontrados vestígios de 12 mil anos A.C.
Os Xarayés seriam o grupo mais setentrional do Pantanal. Segundo a pesquisadora Thereza Marta Borges Pressoti em sua tese de doutorado “Sertões e Minas de Cuiabá e Mato Grosso”, há possibilidade de este grupo ter ocupado territórios desde a confluência do rio São Lourenço, ou Cuiabá, com o rio Paraguai até a confluência do rio Bugres.
Antes das Entradas e Bandeiras Portuguesas, os espanhóis já havia encontrado os primeiros povos indígenas da região já no século XVI. Eles foram descritos por Aleixo Garcia e o navegador Cabeza de Vaca (Álvar Núñes), como povos que viviam em grandes aldeamentos onde realizavam festas com fartura de comida e cultivavam o milho, a mandioca e a batata. Os primeiros moradores do Pantanal escutavam música e produziam instrumentos como buzinas e tambores, fiavam o algodão para fazer vestimentas compridas, usavam adornos corporais e faziam sepultamentos em grandes urnas cerâmicas.
Em Cuiabá dois sítios arqueológicos comprovam esse passado. A arqueóloga Suzana Hirata encontrou dentro na capital dois sítios urbanos pré-coloniais, Bacuia e o Coxipó, o que pode inclusive confirmar a tese dos povos Bóe sobre o passado ancestral da cidade.
As datações da cidade remontam ao século XVII. Para os próprios povos Bóe, tanto o sítio quanto a data colidem com sua história oral.
Cuiabá para os Bóe é Ipuaká, o nome do arpão usado pelos indígenas para pescar piraputanga no rio Cuiabá. “Acho a história de Cuiabá incrível e muito bonita, mas precisamos também incluir nela o passado de nossos antepassados, o povo Bóe. Muitos dos locais e a riqueza da raiz cuiabana derivam dos Bororo”, afirma Estevão Bororo, cientista social.
“Quando Antônio Pires de Campos chegou em São Gonçalo Velho, antes de 1719, tinha essa grande aldeia velha, o nome era Kujipo, o que deu nome ao próprio Coxipó. Dali começaram o contato e aprisionamento do povo Bororo. Quando esse pessoal veio, eles vieram em busca de escravo e daí houve grandes guerras. Na barra do rio Mutuca, o tal Pascoal Moreira Cabral tentou aprisionar os Bororo. Mataram oito acompanhantes e muitos negros. Na fuga os bandeirantes chegaram a um lugar chamado Forquilha, acenderam fogo à noite e aí viram nesse momento o ouro brilhando no meio das pedras do rio”, relata Estevão.
O local de fundação da vila de “Bom Jesus de Cuiabá”, o córrego da Prainha também é um importante ponto para história do povo Bóe. “Prainha é Ikuipbo, significa córrego das estrelas dos bororos. Era das estrelas por conta das pepitas que brilhavam de dentro das águas transparentes à noite”.
O ouro teria ocasionado à expulsão de grande parte dos indígenas da capital. “Os bororos faziam do ouro enfeites e achavam a pedra bonita. Aí que começou as desgraça. Começou a vir mais gente. E os colonizadores começaram a ocupar a terra e dominar a riqueza”.
No início do século XX, as Missões Salesianas juntaram os primeiros povos Bororo que restavam na capital e os levaram para internatos, onde eles eram obrigados a trabalhar, falar português e aprender costumes europeus. Já as mulheres acabaram integradas aos primórdios da sociedade cuiabana através de laços de casamento com os homens que aqui se aventuravam em busca das riquezas minerais.
O matrimônio teria feito à cultura Bororo ser a verdadeira raiz da cultura cuiabana. “As pessoas se envergonham de dizer que são descendentes indígenas, porém o próprio falar do cuiabano é um falar abororado, a cidade vem de um nome bororo, apesar de alguns historiadores virem com teses absurdas que até querem colocar a língua tupi na origem do nome de Cuiabá”, afirma Maria Elizandra Lopes, psicóloga que nasceu na Terra Indígena Mehuri.
Para os Bóes o povoamento de Cuiabá estaria ligado à história de outro ponto turístico da cidade, o morro de Santo Antônio. “Os bororos habitavam desde a Bolívia, passando por Cuiabá, Goiás e Mato Grosso do Sul. Isso remonta a tempos imemoriais e teriam começado depois de um grande dilúvio que fez com que os Bóe se abrigassem no morro de Santo Antônio que era um local místico – Atroari. Dali começamos a retomar a região”, explica Estevão Bororo.
Para Maria Elizandra Lopes as autoridades de Cuiabá deveriam integrar o povo Bóe nas comemorações do aniversário da cidade e na própria narrativa histórica da capital. “Mas isso tem que ir além de explorarem apenas o lado exótico do povo Bóe e nos colocar ali como alegoria. Existe uma vergonha na própria população de querer apagar a herança indígena e dos negros. Todo mundo fala só do passado europeu. Mas isso reduz a memória e a história. Um povo sem memória é um povo fraco”, conclui.
Fonte: Circuito Mato Grosso/Pesquisa