BR-163, a teia de Penélope

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*SUELME EVANGELISTA FERNANDES –

Com o término de um pequeno trecho de asfalto de aproximadamente 51 Km na BR 163, o presidente Jair Bolsonaro repetiu  o gesto de inauguração de três ex-presidentes militares do Brasil: Médici com o governador Fragelli, que entregaram a rodovia de Cuiabá – Campo Grande em 19/02/1974; Geisel com Garcia Neto, que inauguraram a estrada de terra de Cuiabá a Santarém em 20/10/1976; e Gal. Figueiredo com Júlio Campos, que em 06/12/1984 descerraram a placa do  asfalto de Sinop a Cuiabá.

Com a presença de Bolsonaro no Pará no marco zero do término da 163, finalmente houve a entrega definitiva para a população da emblemática rodovia que rasgou o sertão brasileiro, a “estrada ou corredor do progresso” que possibilitou o surgimento de um novo Mato Grosso.

Com o lema “Integrar para não entregar”, os militares em 1968 criaram o Programa de Integração Nacional – PIN, implantando inúmeros projetos de ocupação dos chamados “espaços vazios” da Amazônia, através das políticas de órgãos como SUDAM, INCRA, POLOAMAZÔNIA, POLONOROESTE, PRODOESTE, PROTERRA, POLOCENTRO, Banco BASA, PROBOR, COHAB e, em nível estadual em Mato Grosso, CASEMAT, INTERMAT, CODEMAT, EMATER-EMPAER, EMPA e CARMAT.

Em 1972 o governo federal lançou como parte dessa estratégia a construção da rodovia Transamazônica, ligando o norte ao nordeste e o mais ambicioso e ciclópico plano de integração nacional denominado Rodovia Filinto Muller ou BR-163, que inicialmente partiu de Dourados, Campo Grande até Cuiabá, 692 km de asfalto nos dois Mato Grosso,  retardando um pouco a divisão do estado.

Na sequência veio o desafio de levar essa  estrada até Santarém,  uma verdadeira operação de guerra comandadas pelos 8º e 9º Batalhão de Engenharia e Construção situados em Santarém e Cuiabá. A frente cuiabana foi comandada pelo Cel. José Meireles, mais tarde prefeito de Cuiabá. A epopeia envolvia na comissão de frente a  parte de engenharia formada por 30 técnicos civis e militares especializados em topografia auxiliada pelos grandes  indigenistas irmãos Orlando e Claudio Vilas Boas com 26 índios mateiros experientes.

Entre os inúmeros povos indígenas contactados nessa “terra sem homens”, na altura do rio Peixoto de Azevedo encontraram os famosos e míticos “índios gigantes da Amazônia”, os Panará ou Krenakarore, que mais tarde em 1975 foram todos transferidos para o Xingú, evitando sua extinção completa.

Na segunda etapa vinha a operação de construção Selva, que contou ao todo com 2858 homens entre civis e militares. Iniciada em 1970, seis anos depois (2239 dias) a estrada de terra foi inaugurada com a presença do presidente Geisel  no dia 20/10/1976. Como a estrada de terra era cheia de atoleiros e perigos  recebeu rapidamente o  apelido de Estrada da Onça.

Coube ao então governador Júlio Campos (1983-87) o desafio e a empreitada de asfaltar o trecho de terra pertencente à Mato Grosso. Para tanto, buscou um empréstimo internacional do BIRD (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e outros recursos do Ministério de Planejamento. Campos emprestou 115 milhões de dólares para asfaltar várias rodovias do estado, incluindo os trechos da BR 158 de Barra do Garças até Água Boa; da BR 70 de Barra do Garças a Cuiabá e, é claro, de Cuiabá a Sinop.

No dia 06/12/1984 foi inaugurada com a presença do presidente João Figueredo. Em grande festa e churrasco o asfalto da 163 chegava  em Sinop e, mais tarde, em Alta Floresta e depois  Nova Santa Helena, 650 km.

Bolsonaro terminou um pequenino trecho da estrada ontem e fez um fechamento  histórico lançado 46 anos atrás: ligar por estradas o norte a sul do país, pois essa rodovia incorporada a outras de Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul interligou o Brasil do “Oiapoque ao Chuí”, abrindo os portos do sul e do norte para exportação em Mato Grosso.

Na região do chamado nortão, que não tinha nenhuma cidade na década de 1970, chegou a 20 em 1984 e atualmente possui 42 municípios. Há que se considerar as iniciativas de povoamento oficiais concomitantes privadas e oficiais nesse processo.

Sem tirar o mérito e empreendedorismo de ninguém, há que se considerar nessa história o importante papel do estado brasileiro que destinou uma montanha de recursos públicos para garantir fomento para colonização

Passados 46 anos de BR 163, às vezes ouço alguns colonos que mudaram para Mato Grosso numa carroceria de caminhão como sem terras, cheios de sonhos e que prosperaram depois, ficaram ricos, atribuir o seu sucesso “único e exclusivamente” a seu trabalho, sua bravura, coragem e determinação.  Sem tirar o mérito e empreendedorismo de ninguém, há que se considerar nessa história o importante papel do estado brasileiro que destinou uma montanha de recursos públicos para garantir fomento para colonização e produção, financiamento fácil com créditos subsidiados, infraestrutura urbana mínima, logística e terras a preço de banana.

É comum nos municípios do nortão alguns desses fazendeiros ricos atuais contarem casos de quando vieram como pequenos agricultores e venderam seus sítios de 5 hectares no sul para adquirirem  fazendas inteiras de mais de mil hectares em Mato Grosso em terras antes da união. Oportunidades imperdíveis eu diria.

Os investimentos públicos da colonização da Amazônia “nem sempre” voltaram de maneira direta capitalizada para os cofres do estado brasileiro como deveria. Muitos financiamentos inclusive foram securitizados e depois obtiveram até o perdão dessas dívidas com o estado.

O paradoxo inexplicável é que apesar dessa perseverança e riqueza obtida nos dias atuais pela iniciativa privada nas cidades as margens da BR 163, que tem PIB chinês, o Estado de Mato Grosso encontra-se nos últimos cinco anos mergulhado na maior crise financeira de sua existência, algo incompreensível  mundo a fora. Para além das justificativas de alguns de que a culpa dessa crise é da falta de eficiência na gestão do estado, da corrupção ou dos salários dos funcionários públicos, precisamos refletir para além dessas obviedades e procurar outras justificativas  mais sustentáveis.

Em que pese os inúmeros investimentos havidos no passado pelos governos militares à colonização,  alguns setores do agronegócio continuam incrivelmente ainda tendo benefícios do Estado em forma de incentivos fiscais há pelo menos 10 anos. Somente esse ano de 2020, pra não citar outros, o montante da renúncia chega à casa dos 7 bilhões de reais concedidos  a todos os setores produtivos.

Enquanto abrimos mão de arrecadar, o estado vai à bancarrota com um déficit herdado do governo passado de 1,4 bilhão de reais que hoje diminuiu para 500 milhões.

Imaginem o tamanho do estrago dessa crise na vida daqueles que mais precisam do Estado.

Na reforma tributária do Brasil em curso temos que colocar esse tema espinhoso da tributação do agronegócio na mesa de debates, sem medo, sem revanchismos ou ideologias (Lei Kandir e outras tributações). Tratar como uma pauta nacionalista e patriótica, para que outros pequenos produtores de hoje, tal qual os de ontem, possam também sonhar com crescimento, oportunidades  e riqueza no país. Isso sim é patrotismo!

Como consequência do financiamento desses projetos de integração nacional, o Brasil paga até hoje em forma de dívida interna e externa os investimentos desse  passado-presente.

Nesse contexto, acho que não seria pedir muito para que haja uma maior contribuição cidadã  do agronegócio para com o Povo brasileiro afim de retornar para a sociedade os investimentos oficiais obtidos no passado em forma de dividendos fiscais, mutirão de esforços temporários em prol da nação onde nasceram e prosperaram.

Seria um grande gesto republicanos ou fogo do juízo final tirar nosso estado do atoleiro e ajudar solidariamente àqueles outros brasileiros que não tiveram a mesma “sorte ou oportunidade” de vencer na vida quando vieram pra Mato Grosso e sobrou apenas na memória triste a lenda contada do ouro verde, do café gigante e o pó da estrada da onça.

O término da rodovia BR 163 efetivará um sonho de unir geograficamente o norte e o sul do país, falta agora nos unirmos como irmãos para diminuir o fosso das diferenças gritantes entre ricos e pobres nesse estado.

Mato Grosso pode mais, basta olhar o seu passado e construir novas estradas de esperança.

*SUELME EVANGELISTA FERNANDES  é Mestre em História e analista politico 

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