“Há pessoas que comem cru”, diz dona do açougue que doa ossos

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Empresária Samara Rodrigues de Oliveira se emociona com aumento de procura pelas doações

A empresária Samara Rodrigues de Oliveira, de 38 anos, se emociona ao falar sobre as dezenas de pessoas que vão em busca de restos de carne em seu açougue, no Bairro CPA 2, em Cuiabá. Ela já chegou a ver pessoas comendo a carne crua ou trocando de camiseta para se passar por outro e assim conseguir mais um saco de “ossinho”.

“Tem pessoas que comem o ossinho cru quando chega [a doação] ali [na fila]. Alguns que pegam não têm sal ou óleo para cozinhar. Mães vêm com cinco crianças e tentam pegar mais de um saco. Como vou negar para uma mãe que tem cinco crianças para alimentar?”.

Junto com o marido, Samara administra o Atacadão da Carne, que há 10 anos faz doação de ossos para moradores da região toda segunda, e quarta e sexta-feira, sempre às 11h.

Nos últimos meses, a fila tem ficado cada vez maior e ganhou repercussão nacional após reportagem publicada pelo MidiaNews em 15 de julho.

Ela explica que se surpreendeu com o aumento da procura a cada novo dia de doação. Nessa sexta (23), quase 100 pessoas, entre mulheres, grávidas, crianças e idosos, aguardavam debaixo de sol para conseguir um dos pacotes de 2 kg de ossinho.

Samara diz que o importante é que ninguém saia da fila sem levar um pouco da proteína para casa.

“Quando não tem ossinho, compramos dorso e entregamos para eles. Algumas pessoas aparecem mais tarde, porque estavam fazendo uma diária… Só não podem sair daqui sem nada. Alguns chegam às 8h”.

Repercussão nacional 

A empresária ficou surpresa com a forma que a notícia sobre a fila para doação se espalhou rapidamente pelo Brasil. No início, ela e o marido, conhecido como Doca, não pretendiam dar entrevistas.

No entanto, a expectativa de Samara é que a repercussão sobre a fome que assola os moradores do entorno do CPA retorne em ajuda para as famílias que lotam a calçada ao lado do Atacadão da Carne.

Seu medo é que seja passageira a comoção com as pessoas que precisam dos ossos para ter o que comer.

“Espero que isso sirva para alguns que não estejam atentos a olhar para o lado, que possam olhar… Outros empresários seja de mercado, açougue ou farmácia, porque eles precisam de tudo. E eu acho que o que resume tudo é o amor ao próximo”.

Doca nasceu em Rondonópolis, mas mora em Cuiabá há 23 anos. Já Samara é cuiabana. Apesar de já ter passado por dificuldades financeiras, ela conta que nunca viu a fome tão de perto quanto na fila dos ossos.

Mesmo assim, a situação sensibiliza a empresária profundamente. Ela conta que já deixou de sair para comer fora, por exemplo, por pensar em quantos sacolões conseguiria comprar com o valor gasto em uma refeição com a família.

É por conta disso que ela afirma sequer calcular quanto gasta com as doações, com compra de embalagens, energia elétrica e até mesmo da carne, que poderia ser vendida.

As pessoas da fila são lembradas por Samara e Doca desde o momento da desossa do boi. Eles pedem para a equipe ser “generosa”, fazendo o procedimento de forma que a maior quantidade de carne possível permaneça nos ossos que serão doados.

“Temos um carinho com os cortes da carne. Não damos o osso ‘limpo’. Nesse ossinho vai a chamada ‘bananinha’, que usamos para fazer churrasco. Poderia estar vendendo a R$ 26 no balcão. A parte que não tiro da costela dianteira [para carne moída], poderia estar vendendo a R$ 22. Deixamos essas partes para eles”.

Reprodução/Bruna Barbosa

SAMARA

Samara e o marido administram o Atacadão da Carne há dez anos

Mais de 500 kg por dia 

No começo da pandemia, Samara notou o primeiro aumento na procura pelos ossos. Em um dos dias de doação, chegou a contar 242 pacotes doados, quase 500 kg de osso, já que cada um deles pesa 2 kg.

Ela afirma ter sido uma das poucas vezes que contabilizou as doações.

Ela e o marido sempre tiveram açougue e sempre doaram os ossinhos. No entanto, a frequência de pedidos era bem diferente.

“Era aleatório. As pessoas vinham aqui na frente, pediam o ossinho. Sempre vieram, não é uma necessidade de agora, não podemos colocar que é o Governo de agora, porque sempre houve e somos prova disso”.

Samara lembra que há cerca de quatro anos, precisou intervir para administrar as doações.

“[Atualmente] é mais organizado, já tiro dois colaboradores só para isso, é claro que vem aumentando muito”.

“Sem Jesus não dá”

As camisetas dos donos do açougue, dos funcionários e vários cartazes fixados no estabelecimento exibem os mesmos dizeres: “Sem Jesus não dá!”. Conversando com a empresária, é possível entender a razão.

Samara afirma que é a fé em Deus que torna possível que ela e o marido ajudem as dezenas de moradores do entorno.

As doações são “transformadas” no carinho que as pessoas da fila têm por ela e pelo marido.

“Meu marido tem problema de joelho, eles trazem remédio caseiro, perguntam como estamos. Essa é a recompensa que temos, fora a nossa vida… Hoje não tenho coragem de pedir nada para o Deus. Nada além de saúde para continuarmos lutando”.

Na sexta-feira (23), as pessoas que aguardavam pelas doações explicaram que a fila estava ainda maior por medo de ficarem sem ter o que comer durante o final de semana.

Quando a porta vermelha na lateral do açougue se abre, todos correm para o outro lado da calçada, enquanto Samara alerta que mulheres e idosos são prioridade, pedindo que eles se reorganizem.

Ao conseguirem um dos pacotes, é possível ouvir as pessoas comemorando por terem garantido o almoço.

Em determinado momento, Doca aparece e pede que as moradores “festejem” Deus.

“Vou contar até três, aqueles que puderem abrir a boca e dar um ‘Glória a Deus’ bem alto. Um, dois, três…”, diz antes das pessoas levantarem os braços e atenderem ao pedido.

Veja os vídeos:

 

 

 

Fonte: Midianews