Passos miúdos e lentos. Protegido por um esfarrapado chapéu de palha. Com uma cruz na lapela direita de uma opaca camisa de mangas curtas. Nos pés, sandálias de couro, com meias pretas. Discreto, entrava, procurava um canto, sinalizava que queria uma cerveja, e em silêncio a bebia, nunca pedindo a terceira, mas, pelo menos tomando a segunda, ou saideira. Quem visse aquele octogenário senhor de aparência saudável, num dos barzinhos da Rua Miranda Reis ou em suas imediações, e não o conhecesse, ainda que por fotografia, jamais imaginaria que fosse o arcebispo emérito de Cuiabá, Dom Bonifácio Piccinini.
A velhice no celibato católico isola sacerdotes alcançados pela expulsória canônica aos 75 anos. A Santa Sé envia seus padres, cônegos, bispos e arcebispo mundo afora. Quase sempre os mantendo em lugares distantes de suas origens e familiares. O tempo, implacável, passa e o religioso ganha rebanho seguidor, mas vive longe de sua ancestralidade e das gerações mais novas de sua família. Com Dom Bonifácio não foi diferente. Por mais que a igreja estivesse presente no seu dia a dia, em algum momento – creio – ele se sentiria impelido a sair em busca da vida fora da religiosidade sem que isso o afastasse da fé, da missão evangelizadora que escolheu para si em 31 de janeiro de 1948, quando abraçou a carreira sacerdotal. Abençoada cerveja que aquece a alma, nivela o homem sem que nenhum seja maior ou melhor do que o outro.
Uma vida religiosa intensa. Assim foi a passagem de Dom Bonifácio sobre a Terra. O catarinense de Luiz Alves, nascido em 13 de maio de 1929 virou figura do mundo, da Roma dos imperadores ao bucólico de Lorena, no interior paulista. Na caminhada pregando os ensinamentos do Menino Deus teve tempo para o aprimoramento intelectual e o saber em sua essência. Modesto, nunca pendurou diploma na parede, mas os tinha em quantidade: Especialização em Licenciatura em Letras Clássicas, Licenciatura em Teologia, Doutor em Filosofia. Mas acima de tudo se sentia sacerdote. Sacerdote em sua plenitude, que evangelizava, ministrava sacramentos, pregava justiça social em suas homilias e guardava os segredos de confessionário para si e seu Deus, o Deus de Abraão, Isaque e Jacó.
Cuiabá não é mais tão conservadora quanto antes. Afinal, as sucessivas ondas migratórias mudaram o perfil da cidade de Moreira Cabral e Miguel Sutil com seu povo santo e pecador. Dom Bonifácio precisava manter o equilíbrio social sem ferir os princípios religiosos na terra do Professor Aecim Tocantins, João Balão e Lázaro Papazian; de Jorilda Sabino, Bruna Viola, Liu Arruda, Serys Slhessarenko e Pescuma; de Maria Helena Póvoas, Moisés Martins, Manfred Göbbel, Sango Kuramoti e Maria de Arruda Müller; de Gabriel Novis, Bife, Roberto Campos, Filinto Müller, Vicente Vuolo e Dante de Oliveira; de Gilson de Barros, Rômulo Vandoni, Joaquim Francisco, Comendador Arcanjo, Névio Lotufo e Ramis Bucair; de Padre Firmo, Aristotelino Praeiro e do Pastor Sebastião Rodrigues; de Oscar Travassos, Jejé, Lucinda Persona e Luzia Guimarães; de rostos anônimos e outros nem tantos. Muitos foram os que chegaram, participaram da miscigenação em seu sentido maior e o arcebispo os via pelo prisma da filiação Divina – todos filhos de Deus, passíveis de pecados e dignos do perdão.
A Santa Madre mandou Dom Bonifácio pra arquidiocese cuiabana instalada numa área em ebulição habitacional. Mas, não pra sua titularidade que era do arcebispo Dom Orlando Chaves. Ele permaneceu discreto como recomenda a condição de coadjutor.
Dom Bonifácio acompanhava em respeitoso silêncio os passos de Dom Orlando Chaves, a quem sucederia. Permaneceu silencioso de 1975 a 15 de agosto de 1981, quando Dom Orlando Chaves fechou os olhos para sempre. Daquela data em diante a Igreja Católica de Mato Grosso estaria sob sua direção.
Dom Orlando Chaves entrou para história por substituir uma lenda do catolicismo mato-grossense, o arcebispo, governador e imortal da Academia Brasileira de Letras, Dom Francisco de Aquino Correia; e por sua ousadia, em 1968, ao ordenar a demolição da Catedral Metropolitana Basílica do Senhor Bom Jesus, que cedeu espaço ao templo que ora enche os olhos de todos por seu arrojo arquitetônico.
A vida nos prepara para a morte. Lentamente, segundo a segundo, nos mostra a direção do túmulo. Dom Bonifácio enfrentava a hipertensão, que se agravou com o avanço da idade. Em 23 deste mês de novembro sua saúde se deteriorou e ele pediu orações. Uma unidade de terapia intensiva no Hospital Estadual Santa Casa virou seu último endereço. O derradeiro suspiro, no sábado, 28, foi ao lado de sua residência ao longo de 45 anos. A arquidiocese de um lado, e de outro, a Santa Casa. Entre elas um cristão que fez do sacerdócio sua razão de ser.
O fim da vida é o começo da história de Dom Bonifácio. Qual historiador escreverá sobre a mão estendida do fervoroso religioso sobre um enfermo, rogando ao Pai por sua acolhida no céu? Sobre sua palavra pedindo resignação ao condenado? Ensinando o caminho a jovens, adultos e idosos? Talvez nenhum. Pode ser que o mostrem por sua condição de adesgueano – membro da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
Como será apresentada historicamente a vida de Dom Bonifácio, o arcebispo que se mantinha distante das questões ideológicas e ambientais como faziam seus pares, os bispos Dom Pedro Casaldáliga, na Prelazia de São Félix do Araguaia, que vestia a camisa de índios e sem terra, e Dom Osório Stoffel, em Rondonópolis, que abraçou a causa ambientalista?
Sem inventário patrimonial Dom Bonifácio nos dá adeus. Em seu lugar permanece o arcebispo Dom Milton Antônio dos Santos, que o sucedeu em 2004 quando a expulsória canônica bateu em suas costas. Em Mato Grosso a igreja de Pedro prossegue em sua caminhada. Sai um corinthiano e outro torcedor do Timão continua à frente do altar. O arcebispo parte na solidão que foi sua companheira ao longo da vida. Não deixa herdeiros. O celibato o isolou familiarmente. No limiar da existência, ao pensar sobre sua trajetória o indivíduo tem que buscar a companhia da cerveja para mergulhar em pensamentos, tentar se encontrar, viver ainda que na imaginação sonhando com a juventude que ficou no passado, na curva do tempo. O arcebispo da loira gelada na Miranda Reis ao tomar seus goles não ofendia Jesus a quem serviu com espírito e coração. Afinal, o Filho de Maria se manifestou Divino ao transformar água em vinho numa festa em Canaã.
Fonte: Diário de Cuiabá/Eduardo Gomes