‘Vou começar a vida de novo’, diz inocente que ficou 5 anos preso

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Imagine estar dormindo em sua casa e ser acordado de madrugada por policiais e levado até a delegacia acusado de ter cometido um crime. Entretanto, não há nenhuma prova contra você, somente boatos que alguém disse que ouviu falar.

Para piorar, você não é liberado e a prisão, que era temporária, se torna preventiva. E mesmo sem provas concretas, você passa cinco anos atrás das grades. Desse período, um ano e sete meses você continuou preso mesmo após uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) inocentando-o.

É difícil até imaginar, mas essa é a história do jardineiro cuiabano João Paulo de Amorim Jesus, de 28 anos acusado de um homicídio que não cometeu. Pai de duas filhas, ele foi preso em 28 de maio de 2019 e só ganhou a liberdade no último dia 5 deste mês.

“Eram 4h da manhã, [os policiais chegaram] e me levaram para prestar esclarecimento na DHPP (Delegadia de Homicídios e Proteção à Pessoa) e de lá já me enviaram para o Fórum. [A prisão] Começou com 15 dias de temporária, evoluiu para preventiva, aí veio a pandemia e disseram que não tinha prazo para soltar. E nisso foi indo, enrolando, adiando, e nunca ia testemunha, nem ninguém para me acusar”, conta.

A história de João Paulo ganhou as manchetes esta semana, quando a Defensoria Pública de Mato Grosso divulgou o caso informando que, após cinco anos, ele finalmente ganhou liberdade graças à intervenção do defensor público André Rossignolo.

“Não podia pagar um advogado. Fiquei meio esquecido lá. Eu estava trabalhando na unidade há 2 anos e outros rapazes saíram. E eu achei estranho essa demora para eu sair. Eles não me diziam nada”, recorda João Paulo.

“Aí cheguei no defensor que fazia um trabalho lá dentro, [pedi] só para ele olhar meu nome, para olhar as remissões que estava conseguindo. Foi  aí que ele se deparou com essa situação. Se não tivesse conseguido esse contato com ele, estaria lá até hoje”.

João Paulo foi preso com outras duas pessoas, acusado de matar um homem com cinco tiros na região do Cinturão Verde, em Cuiabá. O crime ocorreu em outubro de 2018.

Nos últimos anos, casos de prisões injustas ganharam visibilidade na mídia e nas redes sociais. Um levantamento feito pelo jornal Folha de S. Paulo entre 2020 e 2021, 84% dos casos de injustiças são por procedimentos de reconhecimento feitos ao arrepio da lei, pessoas presas no lugar de outras por erro de identificação e prisões baseadas só nas palavras de policiais e sem investigação.

“Marcavam júri, audiência, mas nunca ia ninguém. Foi tudo baseado no ‘ouvi falar’, nada concreto. ‘Ah ouvi falar que mandou matar porque roubou o pai dele’. Essa pessoa que falou que ouviu falar não compareceu até hoje para falar”, conta.

Outro dado é que a maioria são pessoas negras e, quase em sua totalidade, pobres e moradores da periferia. João Paulo sentiu isso na pele.

“A justiça é falha para uns e para outros ela serve. Mas no caso, quem é pobre e não tem recurso nenhum sofre mais o dano. Agora se você tem um nome, um brasão na família, você é mais respeitado e às vezes nem fica lá”, diz.

“Se for um zé ninguém da vida, já era. Fica lá igual fiquei por 1 ano e 7 meses mesmo tendo sido absolvido pelo STJ”.

Momentos difíceis e recomeço

João Paulo viveu momentos difíceis enquanto preso. Uma das maiores dificuldades, entretanto, foi ficar sem ver suas duas filhas, hoje com 8 e 9 anos, que não podiam ir visitá-lo.

“Foi difícil, pois elas eram bem pequenas. Não podiam entrar lá, fiquei todo esse tempo sem vê-las. Perdi a melhor fase da criança, [o começo da] a infância. Agora já estão maiores, mas eram bem pequenas quando fui preso”, lamenta.

O período também foi marcado por muito medo e insegurança. João conta que já estava ficando sem forças.

“Foi muita agonia, insegurança. Eu não sabia o que fazer mais estando naquele lugar sem dever. Tinha que entregar na mão de Deus porque não tinha mais o que fazer, recorria às autoridades, mas não tinha mais forças”.

Agora que ganhou liberdade, o jardineiro está feliz em rever as filhas e a família.

“Reencontrar minhas filhas foi bom, maravilhoso. Estar com a família está sendo muito bom. Agora é começar”.

Ele contou que está recebendo propostas de oportunidades de emprego.

“Estou tirando documentos e agora estão surgindo algumas oportunidades de emprego. Vou começar a vida de novo, reconstruir, tentar conseguir o que foi perdido de volta”, diz, otimista.

João Paulo afirma também que está pensando se entrará com uma ação contra o Estado para tentar reparar os danos dos anos em que passou preso injustamente.

“Foi um erro da Polícia. E depois de preso, erro do sistema, e também do Judiciário, que me deixou todo esse tempo lá”.

“Falaram que meu pai foi vitima de roubo e já alegaram que eu mandei matar como vingança porque roubou minha família. Eu nem conhecia nada nem ninguém, não tinha nenhuma ligação. O crime foi lá no Pedra 90, eu moro no Pedregal, bem distante”, se defendeu.

Entendendo juridicamente

Preso em maio de 2019, João Paulo ficou inicialmente na PCE (Penitenciária Central do Estado) e foi transferido para a Penitenciária Ahmenon Lemos Dantas, em Várzea Grande, há cerca de dois anos.

Somente em 15 de julho de 2021, mais de dois anos após a prisão, ele foi pronunciado, ou seja, o juiz de primeira instância entendeu que ele deveria ir a júri popular. A decisão foi mantida pela Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), no dia 10 de junho de 2022.

Porém, a defesa de um dos acusados recorreu ao STJ, que acatou o pedido e em outubro de 2022 impronunciou João Paulo e os outros dois acusados, sob o argumento de que não havia provas no processo de que eles eram os autores do crime. Impronunciar, neste caso, significa que não havia indícios de autoria por parte dos acusados.

Após essa decisão do STJ, o alvará de soltura foi encaminhado à PCE (Penitenciária Central do Estado) para que fosse cumprido, no dia 10 de novembro daquele ano. Porém, conforme consta nos autos, ele não se encontrava na unidade penitenciária naquele momento.

Desse modo, o alvará não foi cumprido e o Sistema Penitenciário não informou ao Judiciário que ele havia sido transferido para o Complexo Penitenciário Ahmenon no dia 29 de setembro de 2022.

Sem a comunicação da transferência pelo Sistema Penitenciário, João Paulo continuou preso por mais um ano e seis meses, apesar da expedição do alvará de soltura. O jardineiro só foi solto após atuação da Defensoria, que solicitou à Justiça o imediato cumprimento do alvará de soltura, o que ocorreu no último dia 5 de maio.

Fonte: Midianews