Vício no ‘tigrinho’ é grave e pode levar ao suicídio, alerta psicólogo

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As casas de apostas, conhecidas popularmente como bets, têm ganhado cada vez mais visibilidade — e polêmica — no Brasil. Impulsionadas por influenciadores digitais que incentivam o uso dessas plataformas, elas se tornaram presença constante na rotina de muitos brasileiros. É comum conhecer alguém que já apostou, ganhou algum dinheiro ou, em muitos casos, perdeu tudo.

O que começou como entretenimento, para alguns se transformou em vício, afetando não só o apostador, mas também sua família e círculo social. Diante desse cenário, o psicólogo Daniel Aloise faz um alerta sobre os impactos das apostas na saúde mental. Em entrevista, ele explica os principais sinais de alerta que familiares e amigos devem observar.

O profissional também aponta que homens entre 20 e 35 anos fazem parte do público mais vulnerável à compulsão por jogos e reforça a importância de não normalizar o hábito de apostar, destacando os riscos que esse comportamento pode gerar, como diferentes formas de dependência.

Sabemos que você atende os vícios mais comuns como o da droga e do álcool, porém as bets começaram a ganhar espaço na vida dos brasileiros, de uma forma negativa. Como iniciou esse trabalho?

Desde o final de 2023 começou a chegar uma demanda muito grande de pessoas com vício em jogos. Pessoas, inclusive, procurando internação psiquiátrica, porque não conseguiam parar, estavam vendendo tudo. Uma dinâmica muito semelhante como a do vício em drogas, vendendo coisas, propriedades, apartamento, para poder sustentar o ato compulsivo do jogo. E nós [psicólogos] ficamos intrigados. Aquilo começou a preocupar, começamos a investigar, vimos que a situação estava feia e o que mais preocupou foi que essas pessoas que chegaram para buscar tratamento tinham uma certa condição financeira. A maior parte das pessoas que está viciada em jogos é de baixa renda. Uma série de pessoas pegando o dinheiro do Bolsa Família e injetando nas bets.

Foto: Rodinei Crescêncio/Rdnews

Daniel Aloise psic�logo

Depois que você começou a atender esse tipo de paciente aqui em Cuiabá, aumentou o número de pessoas buscando esse tipo de tratamento?

Sim. Em 2024, já houve, pelo menos, oito pacientes em situação grave, procurando internação. Eram pessoas desesperadas, e o que eu faço nesses casos? Tento buscar uma abordagem semelhante à usada no tratamento de álcool e drogas. Então, sim, a demanda aumentou bastante. Inclusive, uma dessas pessoas que tratei hoje está se mobilizando para criar um grupo de apoio, semelhante ao Alcoólicos Anônimos, mas voltado para jogadores — algo como “Jogadores Anônimos”. É muito forte. Claro que não se trata de um apoio profissional, mas de uma rede de apoio, o que é fundamental no tratamento de dependências. São pessoas que realmente entendem o que o outro está passando, o que nem sempre acontece com quem nunca enfrentou esse tipo de problema.

Um dado importante: a Organização Pan-Americana da Saúde, ainda durante a pandemia, fez um estudo epidemiológico prevendo que isso aconteceria. Com a sobrecarga e a quebra do sistema de saúde, uma série de fatores se acumulou. A organização projetou que, entre 2024 e 2025 — ou melhor, nos sete anos seguintes à pandemia —, haveria uma epidemia de problemas de saúde mental. E foi justamente nesse contexto que o “tigrinho” ganhou força.

 

Quais são os impactos que o vício em apostas causa na vida da pessoa? Além da venda de bens materiais, como você mencionou, o que ocorre no aspecto psicológico? Como funciona esse “transe” em que a pessoa entra?

Certo. Uma das coisas que a gente percebe é que, em muitos casos, já existe uma predisposição. Há pesquisas que indicam um perfil de risco: homens, geralmente entre 20 e 35 anos, são os mais vulneráveis ao desenvolvimento da compulsão por jogos — e à compulsão de forma geral. Observando os pacientes que atendi até agora, percebo que são, em sua maioria, pessoas com autoestima baixíssima e grande dificuldade de relacionamento social e interpessoal. Isso vai se agravando, porque o jogo surge como uma tentativa de compensar algo que já falta dentro delas.

Há, de fato, esse estado de transe que você mencionou. Existe um estudo que mostra isso com clareza: durante o jogo, a pessoa fica dissociada— termo que usamos na psicologia. É como se ela se desconectasse da realidade ao redor, ficando totalmente imersa naquela obsessão. Ela não consegue enxergar nada além daquilo. Os reflexos disso são o que chamamos de transtornos adjuntos: depressão, ansiedade, e, em todos os casos que acompanhei até hoje, ideação suicida. Não foram todos os pacientes em geral, claro, mas todos os que passaram por mim apresentaram vontade de morrer ou de se matar. Isso pode ocorrer porque perderam tudo o que tinham, porque se afastaram das pessoas, ou porque simplesmente não conseguem mais levar uma vida funcional. A compulsão e a obsessão são muito intensas. Portanto, é um problema grave, que pode levar ao pior desfecho possível dentro da saúde mental: o suicídio.

Por que é considerado um vício? A partir de que momento se torna vício — quando a pessoa fica dependente, seja de droga, álcool ou apostas?

São três os fatores principais: o fator de oportunidade, o fator de predisposição individual e o fator cultural. O fator de oportunidade é quando a plataforma está ali, acessível de forma prática, simples e sem regulação — exatamente o que estamos vendo na CPI das Bets, com a explosão de propagandas. Isso cria um ambiente propício ao vício. O segundo fator é a predisposição individual. Algumas pessoas têm uma sensibilidade maior a esse tipo de estímulo — não é uma fraqueza, mas uma vulnerabilidade. Muitas vezes, já têm uma autoestima baixa e um quadro ansioso ou depressivo desencadeado. E por que isso é importante? Porque precisamos integrar esses aspectos com o fator cultural. Os pacientes que analisei até agora compartilham algo diferente de outros tipos de vício: todos têm uma relação muito forte entre sua identidade e a ideia de dinheiro. Para eles, o dinheiro é visto como a solução de todos os problemas. Claro, ter condições financeiras facilita a vida em muitos aspectos, mas, nesses casos, essa associação é intensa e profunda — quase como se o valor pessoal estivesse diretamente ligado à capacidade de obter ganhos materiais.

A isso se soma o fator cultural — o famoso “jeitinho brasileiro”. Vivemos em um país onde grande parte da população não tem renda suficiente para se manter, trabalha longas horas, recebe pouco em troca. Aí surge uma propaganda prometendo um ganho fácil, rápido, imediato. A pessoa pensa: “Estou com uma conta vencida, conheço gente que conseguiu resolver a vida jogando”. E às vezes consegue mesmo — pelo menos no início.

Mas aí entra o grande problema, já estudado em pesquisas: o reforço intermitente. É um mecanismo de recompensa muito usado por essas plataformas. O que é isso? É um tipo de reforço em que a pessoa não sabe quando o ganho vai acontecer. Como não há previsibilidade, quando o prêmio vem, ele é sentido como uma grande conquista. E isso reforça o comportamento, fazendo com que a pessoa volte a jogar — sempre em busca daquela sensação novamente.

Foto: Rodinei Crescêncio/Rdnews

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Visto os apontamentos sobre o vício. O que causa essa dependência em jogos?

Existe uma questão que causa a dependência. As pesquisas em jogos apontam que a pessoa entra em um certo estado de transe, que é chamado de falácia. Nos Estados Unidos, eles chamam de falácia do jogador. Qual é a falácia do jogador? É a ideia de que após uma série de perdas, existe um processo psicológico onde a pessoa acredita que pode voltar a ganhar. E isso vai sendo reforçado pelo próprio sistema do jogo. Então, nós [psicólogos] vemos que é um mecanismo feito para viciar mesmo. O mecanismo do jogo é feito para causar a dependência.

Como as famílias devem lidar com o filho, sobrinho, qualquer ente que esteja viciado?

Esse é um outro fator muito importante, porque na maioria das vezes, a família não sabe lidar com a situação. Por não saber lidar, acaba, às vezes, piorando um pouco a situação. Porque o vício na nossa sociedade, seja em drogas, jogos ou qualquer tipo, é visto como uma questão de caráter ou uma questão moral. E essa não é a realidade. Dentro da família, começa aquele hábito de enxergar a pessoa dependente como ruim. Uma pessoa que já está em processo de marginalização, psicologicamente falando, começa a ser mais marginalizada e isso acaba potencializando. Então, eu acredito que o mais importante, se tiver algum membro da família passando por isso, é procurar auxílio especializado. A partir disso, entender que é um problema que pode se tornar um transtorno mental, que vai precisar de acompanhamento, de manutenção, para evitar recaídas e que não é uma questão moral. As famílias, geralmente, têm muita dificuldade de lidar com isso, porque é um problema que vai afetar diretamente na lógica familiar. Uma conta que não é paga, um lazer que não pode ser realizado, o aluguel que não está em dia. Tudo isso pode começar a gerar uma tensão muito grande na família.

Quais são os primeiros sinais que a pessoa demonstra no ciclo familiar, que realmente está se perdendo, não sabe mais o que fazer?

Primeiro, a irritabilidade. Isso mostra que ela está com uma baixa sensibilidade à frustração e que muito provavelmente está sofrendo com várias perdas. Segundo ponto: o isolamento. A pessoa começa a parar de conviver com a família. Terceiro ponto: a família, principalmente quando tem um convívio, começa perceber que a pessoa está jogando bastante e está sempre no celular. O discurso de negação, – “não é nada demais” – é como um mecanismo de defesa. Ninguém pode falar nada em relação ao assunto. Então, esses são os primeiros sinais que realmente podem se tornar algo alarmante. Além das perdas materiais.

Quando a pessoa já está no processo de negação, frustração, e precisa do apoio familiar que muitas vezes não existe. Como ela pode se auto ajudar?

Procure um profissional da saúde mental ou o CAPS [Centro de Atenção Psicossocial]. Porque os CAPS aqui de Mato Grosso já estão atendendo essa demanda. Uma coisa importante: o sintoma psicológico denuncia, é como se fosse um mensageiro de algo que já estava errado previamente. Antes de ser instalado, é como se o nosso inconsciente falasse assim – “tem alguma coisa errada, você precisa dar uma parada na sua vida e dar uma olhada com um pouco mais de calma o que está acontecendo com você”. Procurar informações por fora, eu sugiro documentários que explicam a lógica do jogo, porque como com o uso de substâncias, existe uma indústria que lucra muito em cima disso, que realmente não está preocupada com o mal estar dos usuários. De alguma forma, quando a pessoa se conscientiza de como funciona essa indústria, isso pode ajudar a entender que está sendo uma massa de manobra. A lógica do vício só vai fomentar e sustentar um problema interior que já tem na pessoa. Então, o vício em jogo acaba se tornando um processo de regulação emocional. Assim como a droga, a pessoa está isolada do mundo e se regula emocionalmente. A maior orientação para as pessoas é: que elas prestem um pouco mais de atenção emocionalmente nelas mesmas.

Como a atividade física ajuda nesse tipo de vício e de que forma funciona?

Já tem uma série de pesquisas que mostram que a atividade física realmente ativa a endorfina, serotonina e dopamina e ajuda a pessoa a lidar com o processo. Para quem já tem um problema de vício e precisa lidar com a recaída, o cérebro solta uma série de informações e de estímulos. Nesse caso, os estímulos que são liberados no exercício físico ajudam a dar uma amenizada no vício, além de regular todo o processo do sono. Geralmente, pessoas viciadas não dormem ou não tem dormido bem. O exercício físico vai auxiliar na questão do sono, na alimentação, na reposição de nutrientes também. A necessidade de troca de nutrientes do corpo, é uma forma da pessoa entrar em contato emocionalmente consigo, esse é um dos pilares para qualquer tipo de tratamento de transtorno mental – atividade física, sono regulado, alimentação e o acompanhamento da saúde mental.

Existem pessoas que acordam durante a madrugada, reservam algum horário do seu dia para se dedicar a aposta, por acreditar que aquele é o melhor momento. Qual é a sua opinião?

Eu vejo que podemos assumir a responsabilidade disso aos influenciadores. Porque vemos que eles propagam isso – “tal horário paga mais, tal horário paga menos” – isso eu já cansei de ver partindo deles, mas quando uma pessoa já está nessa condição de regular a rotina dela baseada no jogo, mostra isso que ela está em um estado alarmante. O processo de identidade já está associado de alguma forma com o jogo, então, cada vez que isso vai se adentrando mais na vida e na personalidade da pessoa, fica difícil ela se abster. Essa fase vai tomando conta de tudo, a pessoa acaba se vinculando em um processo identitário mesmo, por conta do vício.

Qual é a orientação para aquela pessoa que está passando pelo processo de vício?

No fundo sabemos que tem alguma coisa errada, há pequenos alertas que a pessoa deixa passar desesperado”. A maioria de nós não leva isso em consideração. Mas preste mais atenção nas próprias emoções, no processo de consciência, no processo de discernimento e não ter vergonha de pedir ajuda, é fundamental. Agora para pessoa que realmente já está ou vê o problema de vício, não pode ter vergonha de pedir ajuda, porque a dependência pode chegar no extremo, e o extremo é o suicídio. A pessoa perde total referência da e acaba se colocando em situações bem vida Procure um profissional de saúde mental, é o mais importante. Fortalecer a rede de apoio é o mais importante, os laços familiares, a conversa e o diálogo, é algo que traz essa força para poder sair da situação. (RD News)