Por Gisela Simona
Outubro marca um ano da sanção da Lei 14.994/2024, que elevou para até 40 anos as penas para o crime de feminicídio. A nova legislação, que transformou o feminicídio — antes tratado como uma qualificadora do homicídio — em crime autônomo, é mais que um avanço jurídico: é o reconhecimento de que matar uma mulher por ser mulher é um crime de ódio, e precisa ser tratado com a gravidade que representa.
O primeiro brasileiro condenado sob a nova legislação, Daniel Silva Vitor, foi sentenciado a 43 anos e 4 meses de prisão em fevereiro de 2025, por matar a companheira Maria Maianara Lopes Ribeiro, em Samambaia (DF). Um caso emblemático, não apenas pela condenação exemplar, mas por expor o quanto a impunidade ainda é o combustível da violência de gênero em nosso país.
Infelizmente, o Brasil ainda carece de um sistema unificado de catalogação das sentenças emitidas com base na nova lei. A ausência de transparência e integração entre notícias nos mais diversos veiculos de comunicação de massa, órgãos públicos e o Judiciário impedem que tenhamos um panorama real do impacto da legislação. Mesmo assim, os números disponíveis são alarmantes: como o total de julgamentos de feminicídios que saltou de 3.375 em 2020 para 10.991 em 2024, um aumento de 225%, segundo o Conselho Nacional de Justiça. E ainda que 1.492 mulheres foram assassinadas em 2024, uma média de quatro mortes por dia, revelando que a escalada da violência letal segue inaceitável.
Em Mato Grosso, estado que pelo segundo ano consecutivo lidera o ranking nacional de feminicídios, o cenário é igualmente grave. Só até a primeira quinzena de outubro deste ano, 44 mulheres foram assassinadas, número que se aproxima das 47 mortes registradas durante todo o ano de 2024. Ainda não há dados oficiais consolidados sobre as sentenças baseadas na Lei 14.994, o que reforça o desafio de monitorar e cobrar respostas mais céleres da Justiça.
Nas palestras e audiências que tenho participado, repito que a nova lei deu visibilidade inédita à violência contra as mulheres, mas o combate a esse crime ainda enfrenta desafios diários. As políticas públicas precisam ser fortalecidas, a rede de proteção deve ser ampliada e a cultura machista — que naturaliza a subjugação da mulher — precisa ser enfrentada com coragem e persistência.

Não basta punir: é preciso prevenir, educar e transformar.
Como advogada, servidora pública e deputada federal — e hoje presidente da bancada feminina do União Brasil na Câmara dos Deputados, que reúne 16 excepcionais parlamentares comprometidas com essa pauta — tenho reiterado que a Lei Maria da Penha (11.340/2006) foi o ponto de virada. Ela inaugurou um novo capítulo na história dos direitos das mulheres, ao criar instrumentos concretos de prevenção, proteção e responsabilização. É uma lei que celebramos diariamente, não como um símbolo, mas como um marco civilizatório.
Na condição de relatora do Pacote Antifeminicídio, aprovado pelo Congresso em setembro e sancionado em 9 de outubro de 2024, defendo que o enfrentamento à violência de gênero deve ser uma missão compartilhada entre o Estado e a sociedade civil. Porque o feminicídio é um crime que carrega um traço cruel: ele comumente é cometido dentro de casa, por homens que tinham relação afetiva com as vítimas. Mulheres que, muitas vezes, já haviam denunciado, buscado ajuda, pedido medidas protetivas — e ainda assim foram mortas, muitas diante de seus filhos.
Essas histórias expõem a falência de uma estrutura que, apesar de leis robustas, ainda falha na prevenção e na resposta rápida. A lentidão dos sistemas, a falta de monitoramento dos agressores e a insuficiência de abrigos e equipes de atendimento formam um ciclo perverso.
Por isso, achei interessantíssima a iniciativa da Câmara Setorial Temática de Enfrentamento ao Feminicídio, presidida pela deputada estadual Edna Sampaio, na Assembleia Legislativa de Mato Grosso, da qual tenho a honra de participar. A proposta de realizar audiências em vários municípios, baseadas em estudos científicos e experiências práticas, é um passo concreto na direção certa: o de construir soluções territoriais e interinstitucionais, capazes de proteger a vida das mulheres.
Para se ter uma ideia da importância destas iniciativas é só lembrar que, recentemente, o Mapa da Segurança Pública 2025, motrou com uma clareza brutal, os desafios que enfrentamos enquanto nação, ao apontar o Brasil como um dos países onde mais morrem mulheres no mundo, pelo simples fato de serem mulheres. Outro dado assombroso é o aumento de 200% nos casos de lesão corporal seguida de morte. Números que não apenas chocam; muito antes denunciam um país onde o machismo ainda é uma ideologia de morte.
Por isso, repito sempre: não haverá lei capaz de salvar vidas se não mudarmos a estrutura social e cultural que sustenta a violência de gênero. Assim, enquanto o corpo feminino for visto como posse ou território, continuaremos perdendo mulheres, mães, filhas e irmãs para uma lógica perversa que insiste em chamar de amor aquilo que é controle, humilhação e assassinato.
A luta é longa — mas é também irreversível.
Mas acredito piamente que é com a força de todas que vieram antes e das que hoje resistem, que lutaremos até o fim, com todas as vozes, letras e leis. Pois para nós sempre será: nenhuma mulher a menos.
- Gisela Simona é advogada, servidora e deputada federal.