A chegada das picapes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ao Acampamento Nova Aliança, na última semana de julho, foi aplaudida pelos moradores.
Há mais de dez anos, as famílias aguardam que o órgão do Governo Federal cumpra determinações judiciais e destine, para a reforma agrária, áreas do Projeto de Assentamento (PA) Tapurah/Itanhangá, atualmente ocupadas por fazendeiros de soja.
A felicidade, contudo, durou pouco. Nos dias seguintes, tiros foram disparados contra o acampamento e ameaças compartilhadas em grupos de WhatsApp.
Diante dos ataques, o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) solicitaram ao Governo de Mato Grosso que mantenha policiamento ostensivo no PA Tapurah (433 km a Médio-Norte de Cuiabá).
Com 115 mil hectares, extensão comparável à do município do Rio de Janeiro, o assentamento no Norte de Mato Grosso deveria ser um dos maiores projetos de reforma agrária do Brasil.
Porém, foi tomado por grandes produtores de soja, a partir de um esquema ilegal de apropriação de terras públicas, segundo investigações da Polícia Federal (PF) e decisões da Justiça Federal.
Das 1.169 famílias originalmente assentadas em 1995, pouquíssimas permanecem.
Duas operações policiais já expuseram uma trama de crimes ambientais, invasões de terras, estelionato e formação de quadrilha.
Os sojeiros que invadiram a área atuavam de duas formas, segundo as investigações da PF.
Caso os assentados concordassem em vender os lotes, eles entregavam um termo de desistência ao Incra e eram substituídos por “laranjas” nos registros do órgão federal.
Já em casos de discordância, eles eram coagidos ou tinham suas assinaturas falsificadas.
A coação, segundo a PF, envolvia ameaças com armas de fogo e até incêndios em casas e plantações.
A Justiça Federal determinou ao Incra que retome 170 lotes atualmente ocupados por sojeiros.
Depois de anos de espera, o Incra cumpriu as primeiras decisões na semana passada e retomou seis lotes, sorteando 15 famílias para ocuparem a área.
TIROS E AMEAÇAS – Após a ação do Incra, veio a reação.
No anoitecer da última quinta-feira (25), uma picape passou em frente ao acampamento Nova Aliança e atirou em direção aos acampados. Ninguém foi atingido e dois homens foram presos.
“Tem que pegar esse bando de vagabundos sem terra e matar um por um, meter fogo. É isso que tem que fazer”, disse um integrante de um grupo de WhatsApp de moradores de Itanhangá, chamado Rádio Ita.
Ele ainda não foi identificado. O caso é apurado pelo MPF e pela DPU.
No mesmo grupo, os moradores conversam para que os hotéis da região não hospedem os servidores do Incra, nem os policiais federais.
“Querem lugar para dormir? Durmam no mato ou dentro das caminhonetes”, escreveu outro participante.
A mesma articulação é feita para que os restaurantes da cidade não sirvam comida.
Na solicitação enviada pelo MPF e pela DPU para a Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso, os órgãos destacam que essa mobilização via redes sociais está dificultando a retomada da área pública da União.
Segundo o ofício, “o Estado de Mato Grosso adotou uma controversa postura de ‘tolerância zero’ a invasões e ocupações de terras” e, por isso, “é indispensável que o mesmo vigor protetivo seja observado em favor das famílias instaladas no local e que contam com posse mansa e pacífica fruto da retomada da área pública determinada pelo Poder Judiciário.”
Outros 20 lotes devem ser retomados nos próximos dias. Ofício da DPU enviado ao governo do Mato Grosso orienta que, caso não tenha força policial suficiente em Mato Grosso, o Governo Estadual solicite ao Ministério da Justiça apoio da Força Nacional.
Procurada, a Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso disse que a reintegração de posse é responsabilidade do governo federal.
Disse ainda que o Incra não comunicou previamente que faria a tentativa de retomada.
Após solicitação do MPF e da DPU, o governo de MT iniciou uma operação chamada Zona Rural Segura, com envio de reforço policial à região.
Já o Incra informou que, para dar prosseguimento ao cumprimento das determinações judiciais, é necessário reforço no aparato de segurança (confira a íntegra dos posicionamentos).
LOTES VALEM MILHÕES – As terras do norte de Mato Grosso são valiosas.
O assentamento está próximo de municípios como Sorriso, Campo Novo dos Parecis, Sapezal, Nova Ubiratã, Novo Mutum e Diamantino, todos entre os dez maiores produtores de soja do Brasil.
Uma área de 100 hectares dentro do assentamento vale até R$ 3 milhões, segundo estimativa feita há três anos pelo MPF.
“Lotes grandes, planos e com altos índices de produtividade, gerando a cobiça de um sem número de produtores rurais e de políticos locais, todos dispostos ao uso da força para estender seus domínios sobre as terras dantes voltadas à implementação da reforma agrária”, descreve o MPF em uma ação civil pública, na qual pede a reversão da posse dos lotes para o Incra.
Ao todo, desde a criação do assentamento em 1995, foram transferidos ilegalmente mais de mil lotes para cerca de 80 fazendeiros e grupos familiares, segundo a PF e o MPF.
Desde a primeira operação, mais de 50 pessoas foram presas e dezenas de ações civis e penais foram instauradas.
Segundo os procuradores do MPF responsáveis pela ação, a região enfrenta “um sistemático e articulado mecanismo de apropriação indevida de terras públicas, violência contra assentados, ameaça, expulsão e reconcentração de lotes”.
A HORTA – Quem insiste para que a área do assentamento seja novamente destinada à reforma agrária são cerca de 70 famílias sem terra que desde 2014 vivem em um único lote: o Acampamento Nova Aliança.
Uma delas é Débora Santana, de 39 anos. Viúva há pouco tempo, ela vive em barracão de lona com duas filhas, uma delas, de 20 anos, com paralisia cerebral, e a outra uma bebê de 1 ano e 6 meses.
No pouco espaço que tem, Débora planta hortaliças e legumes, assim como os outros moradores. A produção diversificada difere do entorno tomado pela soja, o que levou o local a ser conhecido como “A Horta”.
“Conseguir um pedaço de terra aqui vai ser tudo para minha vida”, diz Débora. Do Paraná, ela viveu alguns anos trabalhando com serviços gerais em Maringá, mas não sente saudade da vida urbana.
“Na cidade só [se] faz para sobreviver e tem pouca qualidade de vida. A melhor forma de se viver é com um pedaço de terra”, acredita.
Daniel Camargos é fellow da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center, em parceria com a Repórter Brasil
Fonte: Diário de Cuiabá