Em meio às discussões sobre descarbonização do transporte aéreo civil, o etanol de milho brasileiro é fundamental para o novo modelo de aviação sustentável. Com uma tecnologia promissora e uma produção em expansão – especialmente em Mato Grosso -, o biocombustível tem potencial para colocar o país na liderança global, enquanto fornecedor de matéria-prima de SAF (Combustível Sustentável de Aviação). A publicação é do site RD News. Confira:
Segundo a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), o setor aéreo representa entre 2% e 3% das emissões globais de gases do efeito estufa (GEE). Apesar de parecer um percentual baixo, a aviação é um setor considerado de difícil descarbonização, justamente por depender de combustíveis de alta densidade energética. Desde 2010, o tema ganhou força, passando a ser debatido em fóruns internacionais mais frequentemente em 2020, ano em que foram definidas metas para substituir o uso progressivo do querosene fóssil pelos combustíveis renováveis, os biocombustíveis.
Diante dessa busca pela descarbonização da aviação civil, somada à corrida global pela liderança da produção de energia limpa, o SAF se tornou a principal aposta na diminuição das emissões de GEE na aviação, visto que pode ser produzido a partir de três componentes simples: biomassa, óleo usado, ou, o mais vantajoso e comum, o etanol.
Com as iniciativas governamentais para a popularização do combustível sustentável de aviação e a oportunidade de negócio a partir da produção de matéria-prima, Mato Grosso está no holofote para colaborar com a descarbonização da aviação. E a estrela deste processo é o etanol de milho.
Alçando voos no interior de MT
Mais do que um combustível para veículos terrestres, o etanol de milho passa a ser também matéria-prima para o SAF por meio da ATJ (Alcohol-to-Jet) – tecnologia que transforma o etanol em combustível compatível a motores de avião.
Embora ainda mais cara que outros meios, como a HEFA (do inglês Hydroprocessed Esters and Fatty Acids) – que é baseada em óleos vegetais -, a ATJ oferece menor emissão de carbono, o que, consequentemente, leva à maior ganho ambiental e perspectivas futuras da redução de custo com o aumento de investimentos.
Além disso, o SAF a partir do etanol é caracterizado como um combustível “drop-in”. Isso significa que o que a aeronave utilizar para queima não precisa mudar seus motores do combustível, já que ele é adaptável aos mecanismos já utilizados.
Em Mato Grosso, o Sindicato das Indústrias de Bioenergia (Bioind – MT) já possui avanços em negociações para a produção da matéria-prima de SAF. Para o diretor executivo Giuseppe Lobo, é importante que as empresas se atentem à nova demanda do mercado, visto que a sustentabilidade torna-se um pilar para as tratativas mundiais.
“O que a gente percebe como perspectiva do futuro é que, principalmente no SAF, quem produzir combustíveis com menor pegada de carbono vai ter um prêmio maior. Temos uma empresa [FS Sustainability] investindo R$ 150 milhões em uma planta carbono zero em Lucas do Rio Verde. Com esse projeto implementado, a FS vai conseguir produzir um combustível carbono neutro. E isso vai ter muito valor no mercado para aquelas indústrias que querem neutralizar suas emissões”, apresentou.
Atualmente, existem duas usinas certificadas para a confecção do material no estado. Ambas unidades pertencem à Inpasa, sendo localizadas em Sinop (a 480 km de Cuiabá) e Nova Mutum (a 249 km de Cuiabá). Não obstante a novidade do momento, citada por Giuseppe, que é o projeto de uma planta carbono neutro em Lucas do Rio Verde (a 334 km de Cuiabá), da empresa FS Sustainability, com tecnologia de captura e armazenamento de CO2 no subsolo.
FS Fueling Sustainability
Unidade de Lucas do Rio Verde da FS Sustainability
“A nossa cadeia é completamente integrada, desde a recepção dos grãos de segunda safra, milho e sorgo, até as etapas de moagem, hidrólise, fermentação, destilação, desidratação e cogeração de energia”, apontou o Gerente de Sustentabilidade Corporativa da Inpasa, Bruno Henrique Maier.
À reportagem, Maier destacou que a Inpasa possui diferenciais que reforçam o compromisso com a sustentabilidade, entre eles, o uso integral do grão no processo produtivo, a reutilização de água em circuito fechado e a cogeração de energia 100% renovável através do uso da biomassa com o excedente fornecido ao no Sistema Interligado Nacional (SIN).
Outro ponto a se destacar é que as duas indústrias aproveitam os resíduos da produção do etanol de milho para gerar energia elétrica e biogás. A FS, por exemplo, adota o modelo de biorefino, ou seja, integra diferentes cadeias produtivas para reduzir desperdícios e emissões.
Além de terem em comum a produção de etanol de milho, ambas estão investindo pesado em tecnologias para transformar o grão em fonte limpa de energia, fortalecendo a economia local, gerando empregos e posicionando o estado na liderança de transição energética e na busca por combustíveis mais sustentáveis. E tudo isso começa no campo.
“Safrinha” voando alto
Com experiência na produção de biocombustíveis nos últimos anos, Mato Grosso se tornou um dos principais empreendedores de etanol de milho no país. Conforme dados do Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (Imea), na safra 2024/25 o estado teve uma produção de 5,62 milhões de metros cúbicos. Este número é considerado 23,77% maior em relação à safra anterior. A tendência, conforme previsão do Imea, é de um crescimento contínuo para 5,98 milhões de metros cúbicos até 2025/26.
Aprosoja-MT
Para Lucas Beber, presidente da Aprosoja Mato Grosso, o milho de segunda safra, conhecido como “milho safrinha”, é a peça central na engrenagem do agronegócio. Segundo ele, o milho garante a viabilidade da soja e vice-versa.
“Mesmo em anos de preços baixos, o produtor consegue se manter. Além disso, ao produzir etanol e DDG – subproduto usado na alimentação animal –, geramos energia e alimento ao mesmo tempo”, destaca o presidente, que reforça a sustentabilidade e rentabilidade da agricultura com o milho de segunda safra.
Ainda segundo Beber, o milho da “safrinha” deixou de ser descartável ao longo dos anos. Originalmente utilizada como preparo do solo para a soja, o cultivo de milho utiliza o método de plantio direto e, conforme a projeção Outlook do Imea, pode ultrapassar o total da produção de soja até 2034, chegando a mais de 80 milhões de toneladas.
Vale ressaltar que, da semente até o produto final, o caminho é longo. Após a colheita do milho, o grão passa pelas etapas de recebimento e secagem – visando a qualidade final do produto -, entra no processo de hidrólise e chega à fermentação. O próximo passo é a destilação, momento em que líquido é purificado e se torna o etanol de milho, que vai para distribuição. A partir de então, ele pode ser inserido na aviação como SAF.
Imagem gerada por Geovanna Torquato, utilizando IA
Redução da pegada de carbono
Atualmente, o SAF é utilizado por algumas companhias aéreas misturado ao querosene de aviação, em proporções de até 50%. “O SAF é muito semelhante ao querosene de aviação tradicional, mas feito a partir de fontes renováveis, o que reduz significativamente sua pegada de carbono”, explica a gerente de Meio Ambiente da Anac, Marcela Braga Anselmi, em entrevista ao RD News.
Segundo ela, o ciclo produtivo é conhecido como “Do Berço ao Túmulo”, visto que considera as emissões de GEE desde a origem da matéria-prima até a queima do combustível na aeronave durante os voos. “Com o SAF, as emissões de GEE durante o voo são compensadas pelo fato de não haver emissão prévia de carbono fóssil, ao contrário do que ocorre com o querosene tradicional”, explica Anselmi.
Geovanna Torquato/Rdnews
Diferenças do querosene de aviação e do SAF com etanol de milho/cana-de-açúcar
Para o pesquisador Pedro Lacava, chefe do Laboratório de Combustão, Propulsão e Energia do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), ainda que tenha a equivalência de emissão dentro de um ciclo fechado, o biocombustível pode emitir menos CO2.
“A situação ideal seria uma redução de 50%, porque 50% do CO2 vem do SAF, já que ele está dentro de um ciclo fechado. Dependendo de processo para processo, com menos contaminação possível, nós poderíamos calcular uma redução de 25% a 30% do CO2”, detalhou Lacava.
SAF: uma pauta quente
Essa iniciativa está alinhada ao programa federal “Combustível do Futuro”, que estabelece metas para a adoção de SAF na aviação nacional, começando com 1% em 2027 e chegando a 10% até 2037. A Anac já regulamentou a adesão do Brasil ao Corsia (do inglês Carbon Offsetting and Reduction Scheme for International Aviation), mecanismo que passa a valer a partir de 2027, cujo objetivo é a redução das emissões de gás carbônico em voos internacionais.
Além disso, o Brasil possui um compromisso com a Organização Internacional de Aviação Civil (ICAO), assim como com outros países, para atingir a neutralidade do carbono na aviação até 2050. Conforme estimativas do relatório Waypoint 2050, elaborado pela Air Transport Action Group (ATAG), o SAF se torna a solução mais viável, visto que 449 bilhões de litros prometem evitar a emissão de 1,2 milhões de toneladas de CO2.
Segundo o especialista em regulação de aviação civil Antonio Binotto Dupont, da Anac, o impacto do SAF vai além dos céus, pois há benefícios sociais, ambientais e econômicos.
Ao RD News, Dupont afirmou que o milho de segunda safra, por exemplo, ocupa áreas já utilizadas, o que evita o desmatamento, intensificando o uso sustentável da terra. Além disso, resíduos urbanos, da agricultura e da pecuária também podem ser utilizados como matéria-prima para o SAF, contribuindo para o reaproveitamento do lixo, incentivando a renovação de produtos invés do descarte.
No cenário global, os Estados Unidos lideram a produção de etanol, em especial o produzido com milho. No entanto, ante a pressão por “soluções verdes”, países com matriz energética limpa e capacidade produtiva de biomassa como o Brasil – especialmente o produzido em Mato Grosso – tendem a liderar tais investimentos por adotar grãos de segunda safra, utilizar biomassa como fonte energética e integrar a agropecuária e a agricultura familiar.
“O milho brasileiro tem uma intensidade de carbono mais baixa que o milho dos EUA. E isso nos coloca em posição estratégica para atender a demanda global por combustíveis sustentáveis”, afirmou Dupont.
Para que esse potencial se concretize, é necessário incentivo governamental, financiamento para novas plantas industriais e valorização do “atributo verde” do SAF, como alertam os estudos do setor. Mas o caminho já está pavimentado – ou melhor, semeado. E o etanol de milho, nascido no coração do agro, pode ser o combustível de um novo tempo para a aviação e para o planeta. (RD News)