Se você nasceu, cresceu, ou viveu algum período em Cuiabá, já ouviu uma história – ou lenda – de que há uma igreja no Centro da Capital que foi construída em cima de muito ouro, para cessar a atividade garimpeira no local. A reportagem é de ‘O Livre’. Confira:
O santuário em questão seria a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito – localizada na Praça do Rosário, no Bairro Baú, na região central de Cuiabá.
Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN – em 1975, pela Fundação Cultural de Mato Grosso em 1987 e mais uma vez quando incluída – assim como seu entorno – no tombamento do Centro Histórico de Cuiabá. A igreja é a mais antiga ainda de pé na Capital mato-grossense.
Diante desta questão, o LIVRE convidou o historiador Suelme Evangelista Fernandes, de 51 anos, que é do Instituto Histórico Geográfico de Mato Grosso e mestre em história pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT -, para responder a seguinte pergunta: “É verdade que existe uma igreja em Cuiabá construída em cima de muito ouro?”
A reportagem faz parte da série “Livre responde”, que esclarecerá questões sobre Cuiabá que pairam na cabeça dos cuiabanos e paus-rodados.
Bandeirantes
Questionado, rapidamente Suelme respondeu: “Evidentemente que você deve estar se referindo à igreja de São Benedito”. E, realmente, não poderia ser outro lugar. Afinal, aos pés da igreja, que é carregada de histórias e cultura, até hoje há marcas do grande garimpo que ali existiu.
“Essa morraria, que hoje a gente chama de Morro Seminário, Feixe do Morro, Morro da Luz, é um elevado que começa aqui na região da Igreja de São Benedito e vai praticamente até no Porto, na igreja São Gonçalo, essa região foi completamente garimpada. Aliás, Cuiabá surgiu na beira, nas margens do Rio Prainha, ali é o umbigo de Cuiabá, ali está o coração da cidade, foi por ali que os bandeirantes chegaram”, contou Suelme.
Por volta de 1723, o comerciante Miguel Sutil, que hoje dá nome a uma das principais avenidas de Cuiabá, veio de Sorocaba para Mato Grosso, com a intenção de ficar na região que até então, em 1719, todo o processo de ocupação era no Coxipó do Ouro, aqui de ‘São Gonçalo’, pois não existia esse lugar que se chama Cuiabá”, disse o historiador.
Segundo Suelme, um dia Miguel Sutil pediu para um grupo de indígenas buscar mel, para adoçar os refrescos do comerciante. Os indígenas, no entanto, sumiram por todo o dia.
No início da madrugada, eles retornaram e estavam com um bornal improvisado de palmeira. Conforme historiadores, os indígenas disseram ao comerciante que não haviam encontrado mel, mas haviam encontrado ouro, abriram as folhagens improvisadas e entregaram o ouro a Miguel Sutil.
“Ele ficou louco, não conseguiu dormir a noite. Ele perguntou para os índios onde eles tinham encontrado, e eles responderam que tinha muito mais. Aí ele sai de madrugada nessa picada dos índios. Quando eles chegam no Ikuiepó, que é o Córrego da Prainha, diz o relato dos achados, que os olhos dele brilhavam, refletiam, porque o nosso ouro era tipo de aluvião, tipo um mineral na margem do rio. Ele ficou louco, não tinha nem enxada para garimpar, aí ele começou a cavar com a mão”, contou Suelme Fernandes.
Ouro em Cuiabá
A notícia do ouro encontrado em Cuiabá teve grande impacto e trouxe uma enorme quantidade de pessoas para o, à época, “Arraial de Cuiabá”.
“Esse ouro ficava exatamente ali onde é a Igreja São Benedito. Se você observar aquela avenida que sobe o Morro da Luz, Coronel Escolástico, se você olhar a Ilha da Banana, que é o Largo do Rosário, você vai ver que o morro tem uma vértice, que tudo aquilo é atividade garimpeira. Ela tem uma escavação nítida onde passa a avenida Coronel Escolástico. Você observa isso claramente quando vem da Fernando Corrêa em direção ao Centro, ou quando você sobe. Isso que é atividade de garimpagem. Então é óbvio que essa região toda tem muito ouro. Agora, ela foi extremamente garimpada, chegou um momento que exauriu”, disse o historiador.
“Então, é óbvio que é possível ter ouro embaixo da Igreja de São Benedito, é cabível não só na igreja, mas sim na região inteira. Aqui muito próximo da Morada do Ouro tinha garimpagem, onde atualmente é o Sesi Papa. O pessoal garimpava ali, no Carumbé também”, citou o historiador.
“Mas é óbvio que não justifica você destruir uma cidade inteira em busca de uma mineração, talvez não tenha essa escala tão grande, que justifique a destruição de uma igreja nem nada, isso é um absurdo”, completou.
Lenda da Alavanca de Ouro
Contam os historiadores, e também os cuiabanos mais antigos, que no século XVIII surgiu uma lenda de que na região da Prainha, entre a Igreja de São Benedito e o Morro da Luz, mais ou menos onde hoje é o Largo do Rosário, havia uma alavanca de ouro enterrada.
O burburinho fez com que mais de 100 garimpeiros e escravos – enviados por senhores de engenho – fossem enviados para a região em busca de encontrar o tal “tesouro perdido”.
“Ela causou uma ambição enorme naqueles mineradores do século XVIII. Eles começaram a garimpar o entorno dessa alavanca e juntou gente, mais de 100 pessoas”, disse Suelme.
Segundo o historiador, diz a lenda que quanto mais próximo da alavanca os garimpeiros chegavam, mais ela afundava e, quando voltou, encontrou uma indígena bem velha, esquálida, morrendo de sede, não conseguia mais nem falar direito. Aí, ao invés de beber a água, ele ofereceu para ela. A indígena velha agradeceu e falou para ele seguir a viagem, mas se ele ouvisse o canto de uma anhuma, era para sair correndo e lembrar do bem que fez para ela”, contou o servidor público e escritor João Paulo Lacerda Paes de Barros, 39 anos.
O homem não entendeu o que a indígena quis dizer, mas seguiu em frente e retomou a busca à alavanca de ouro. Em determinado momento, quando toda a escavação já havia provocado um buraco muito profundo, o homem ouviu o canto do pássaro e saiu correndo de dentro do fosso.
“Tal foi a surpresa dele quando o fosso começou a desmoronar e matou todo mundo que estava lá dentro, só ele que sobreviveu. Essa é a Lenda da Alavanca de Ouro”, finalizou João Paulo.
“Moral da história: a ambição do homem pode levar a sua morte, é uma lenda de educação moral e ética. Você não deve ser tão ambicioso a ponto de pôr em risco a sua própria vida. É linda essa lenda, né? Talvez a colocação da nossa igreja, tão bonita, de São Benedito seja exatamente para proteger isso, para dizer que nosso maior patrimônio não é ouro, mas a nossa fé, a fé de São Benedito, a religiosidade, né? Por isso que é tão forte aquela igreja, por isso que ela é tão latente, ela está num lugar tão importante”, completou Suelme.
O historiador conta que a notícia do ouro de Cuiabá criou muita ambição e que, embora não tenha documentos que comprovem que a igreja de São Benedito tenha sido criada com a intenção de cessar a busca pelo ouro na região, ela pode, sim, ter sido construída para proteger a jazida da região.
“O fato de ter construído a igreja talvez seja para proteger objetivamente a jazida que está ali, mas que em algum momento não foi interessante explorá-la. Não tem documentos [que comprovem], mas é imaginário popular. O ouro é uma coisa que mexe muito com o imaginário popular, tanto é que, se você observar, o brasão de Mato Grosso tem uma montanha de ouro e uma descrição em latim ‘Virtute Plusquam Auro’, que significa: A virtude é mais importante que o ouro, afirma Suelme Fernandes.
Fonte: O Livre/Crédito: Karina Cabral