O vídeo do influenciador Felipe Bressanim, o Felca, viralizou no começo da semana com mais de 34 milhões de visualizações, expondo a ‘adultização infantil’. Na publicação, ele denuncia contas de influenciadores que usam crianças e adolescentes para monetizar nas redes sociais, as exibindo de maneira sexualizada e precoce.
O tema abriu uma discussão em todo território nacional, acendendo o alerta de que esse comportamento está cada vez mais presentes na rotina das famílias brasileiras. Os impactos vão muito além da aparência. Crianças e adolescentes têm trocado o brincar e a convivência pelo desempenho e pela exposição.
Em entrevista ao Gazeta Digital, a psicóloga Emanuella Luz alerta para essa antecipação de comportamentos adultos, que apaga limites essenciais, afeta a autoestima, compromete o desenvolvimento emocional, social e aumenta a vulnerabilidade a riscos on-line e presenciais.
Segundo ela, os danos podem ser duradouros, mas há estratégias eficazes para proteger e devolver à infância o que é dela por direito: segurança, imaginação e afeto. Para isso ela respondeu perguntas sobre o tema.
Gazeta Digital – Quais são os principais impactos da adultização no desenvolvimento emocional e social de uma criança?
Psicóloga Emanuella: Mais que adultização, há hoje uma erotização da infância: crianças maquiadas, fazendo “skincare”, com vergonha de brincar, isoladas no quarto com telas e sem incentivo a esportes ou convívio. Isso antecipa códigos adultos, apaga limites entre público e privado e valoriza aparência e desempenho acima do brincar. No emocional, gera ansiedade, irritabilidade e dependência de aprovação; no social, incentiva comparações, exposição e vulnerabilidade a assédio. Afeta também escola e rotina, com piora no sono, atenção e rendimento.
Gazeta Digital – Esse processo pode gerar traumas duradouros? Se sim, quais são os mais comuns?
Psicóloga Emanuella: Sim, especialmente quando a exposição é crônica, sexualizada e sem proteção adulta. Pode gerar trauma complexo, ansiedade, depressão, estresse pós-traumático, distorção de imagem, transtornos alimentares e uso de substâncias. O risco aumenta quanto mais cedo e intenso for o processo e menor a rede protetiva. Supervisão familiar e acolhimento escolar reduzem significativamente os danos.
Gazeta Digital – A adultização pode afetar a autoestima e a percepção de identidade da criança?
Psicóloga Emanuella: Sim, a criança passa a achar que seu valor depende de agradar e aparecer, criando autoestima baseada em aprovação externa e, às vezes, em comportamentos hipersexualizados. Isso gera perfeccionismo, autocrítica e vergonha do corpo. Em casa, a presença, escuta e orientação da família criam segurança para que sentimentos apareçam sem medo, com limites entendidos como cuidado. Conversas simples ensinam sobre fronteiras, privacidade e proteção. Elogiar esforço e caráter, regular telas e incentivar brincar, arte e convivência mostram que a infância não precisa “performar” para existir. Assim, a autoestima se fortalece internamente e a identidade cresce protegida.
Gazeta Digital – Em casos como o citado no vídeo do Felca, o que torna a situação mais preocupante?
Psicóloga Emanuella: O problema piora quando a exposição vira negócio, a monetização incentiva repetir conteúdos que exploram crianças, enquanto algoritmos ampliam o alcance para adultos e normalizam o olhar sexual sobre a infância. Crianças não entendem totalmente o impacto do que postam, e decisões ficam com adultos e empresas. A “pegada digital” pode afetar segurança, reputação e autoimagem por anos. Plataformas têm mecanismos para conter isso, mas precisam aplicá-los com rigor, e a sociedade deve cobrar isso.
Gazeta Digital – Como os pais e responsáveis podem evitar a adultização e permitir que a criança viva plenamente sua infância?
Psicóloga Emanuella: O primeiro passo é perguntar: esta criança precisa mesmo de um celular agora? Muitas vezes, um aparelho simples ou smartwatch já garante segurança sem expor às redes. Adiar o smartphone dá tempo para amadurecer antes da pressão on-line. Se for necessário, comece com regras claras: contas privadas sob supervisão adulta, aprovação de seguidores, sem DMs, uso em áreas comuns e horários combinados. Para adolescentes, crie contrato de uso com metas e consequências educativas. A regra é proteção acima de curtidas: evitar postar cenas de choro, dor ou conteúdo sexualizado, não expor rotina/localização, priorizar brincadeira, arte, natureza e convivência. Supervisionar o que consomem e postam, conversar sobre privacidade e limites corporais, acompanhar seguidores e tempo de uso. Diante de riscos, guardar evidências, denunciar e acionar escola ou proteção. Presença e escuta familiar criam ambiente seguro para pedir ajuda e se proteger.
Gazeta Digital – Uma criança adultizada pode ter mais dificuldade de estabelecer relações saudáveis na vida adulta?
Psicóloga Emanuella: Sim, a criança aprende cedo a buscar afeto por desempenho e aprovação, o que na vida adulta pode gerar dificuldade de dizer “não”, medo de desagradar, tolerância a controle e relações desequilibradas ou, ao contrário, hiperindependência e distância emocional. Sem base segura, é mais difícil reconhecer abusos e estabelecer limites. A boa notícia é que relações saudáveis podem ser reaprendidas: envolve reconhecer a própria história, fortalecer autoestima interna, comunicar limites, pedir o que precisa e diferenciar cuidado de controle. Psicoterapia e vínculos respeitosos ajudam a construir relações seguras, recíprocas e verdadeiras. (Gazeta Digital)