Centro de Cuiabá, noite de 23 de maio de 1942. A sociedade vivia um clima de êxtase nos momentos que antecediam a inauguração do mais moderno cinema da capital. Pela primeira vez seria exibido um filme sonoro na cidade. Na sessão de estreia, marcada para as 20h, foi exibido “A noiva caiu do céu”, filme da Warner Bros estrelado por Bette Davis e James Cagney. O cinema estava lotado. Autoridades, boêmios, artistas, intelectuais, homens e mulheres, todos a caráter (vestidos longos, ternos e gravatas), para inauguração do Cine Teatro Cuiabá. Isso foi há 77 anos.
“Tinha gente caindo pelas tabelas (risos). A entrada do cinema mais parecia um mercado, de tanta gente que estava lá para prestigiar aquele momento histórico da cultura mato-grossense. Ambulantes vendiam de tudo na entrada, tinha pixé, pipoca e rapadura”, recorda Aníbal Alencastro, escritor, historiador e que tem seu nome gravado na história do equipamento cultural, por ser um dos projecionistas pioneiros dos cinemas de Mato Grosso. Vale dizer que o projecionista da noite de estreia do Cine Teatro Cuiabá foi o rosariense Ponciano Maciel da Cruz.
O jornal “O Estado de Mato Grosso”, datado de 03 de maio daquele mesmo ano, trazia a seguinte manchete: “Ainda este mês a estreia do Cine Teatro Cuiabá”. A matéria, de autor desconhecido, dava destaque para o andamento da instalação do Sistema Movietone, projetor de última geração (à época) com sistema de som óptico. Uma novidade muito aguardada pelos cinéfilos acostumados com o cinema mudo.
“Não posso adiantar qual será o título do filme de estreia, por constituir uma agradável surpresa para os fãs, entretanto, posso assegurar que será uma produção inédita no Brasil”, declarou ao jornal da época, o engenheiro Henrique de Giovanni, responsável pela montagem do aparelhamento técnico do CTC.
Jornal “O Estado de Mato Grosso”, de 03 de maio 1942 com manchete sobre a inauguração do CTC
O filme que marcou a estreia do Cine Teatro Cuiabá foi uma escolha do Sr. Francisco Laraya, responsável pela administração do espaço, que trouxe as latas de rolo a tiracolo, do Rio de Janeiro. “Noticiários da época deram conta que a sessão inaugural foi magnífica e contou com a presença a ilustre do chefe maior do Estado, Júlio Müller, o idealizador da tão querida obra. Em geral, corria a boca pequena o seguinte comentário: ‘demorou, mas valeu a pena’”, lembra Alencastro.
Na foto, cartaz do filme “A noiva caiu do céu”, que marcou a estreia do CTC no início dos anos 1940
Para a construção do Cine Teatro Cuiabá, que ficou sob a responsabilidade do engenheiro Cássio Veiga Sá, o governo de Júlio Muller investiu mais de um milhão e meio de cruzeiros. Com arquitetura art déco, o Cine Teatro foi construído no terreno onde antes, existia o barracão do lendário Cine Parisien.
Da demolição do antigo cinema à inauguração do CTC, foram quase quatro anos de espera. No mesmo terreno – enorme por sinal, 29 m x 26 m – também fora construído – primeiro – o Grande Hotel, prédio histórico localizado na nova Avenida Getúlio Vargas.
Naquele período, o Cine Teatro foi uma das últimas obras a serem concluídas. Antes, no entanto, fora construída a Residência dos Governadores, o Quartel do 16° Batalhão, o Clube Feminino e o Abrigo Bom Jesus.
Na nova Av. Getúlio Vargas, Grande Hotel e Cine Teatro Cuiabá numa propaganda do governo da época
As primeiras décadas do Cine Teatro Cuiabá foram gloriosas. O aparelho público foi palco de grandes peças teatrais, shows de calouros e filmes inusitados que lotavam as salas. O público disputava as vagas e, muitas vezes, tumultos eram formados. Infelizmente, o cinema foi perdendo sua força e encantamento, passando por várias concorrências e, enfim, foi desativado em 1997.
“Quente pá catiça”
Demoraria algumas décadas até que as centrais de ar condicionado fossem uma realidade. Mas a direção tinha uma maneira inusitada de aplacar o calor. Na época, o Cine Teatro apresentava um engenhoso sistema de ventilação, com serpentinas que esguichava vapor de água. Em dias de muito calor, eram adicionadas barras de gelo nos reservatórios de água. No entanto, o calor não era o único mal que prejudicava as sessões no Cine Teatro. A energia, ou a falta dela, provocava apagões com frequência.
No requintado Cine Teatro Cuiabá, nos primeiros meses de funcionamento, também havia uma sala de chá no foyer do teatro, influência trazida das salas de cinema do sudeste do país. Mas por causa do calor intenso da capital, fora desativada rapidamente. Hoje, com centrais de ar condicionado instaladas no prédio histórico – nem tão modernas assim -, onde um dia funcionou contraditoriamente o espaço que servia chá, uma bomboniere moderna serve, entre outros, chá gelado.
A era das matinês
Por décadas, o Cine Teatro Cuiabá foi cenário de romances, desacordos, crendices, travessuras e muito lirismo. Produções cinematográficas e espetáculos cênicos também eram pretextos para encontros e namoricos nas longas matinês de domingo que exibiam, em sua maioria, séries de TV. Do auge ao fechamento, dos anos parado à reforma, criou-se um imaginário repleto de boas lembranças, algumas balelas e muita arte.
“Entre aviõezinhos de papel lançados do mezanino, nas matinês a gurizada ia ao delírio aplaudindo super-heróis nas séries do Tarzan, Flash Gordon e os cowboys dos filmes de faroeste. Qualquer cena de ação era motivo para muito alvoroço. Lembra da Condor Filmes, aquela produtora antiga? Bem, ela tinha uma apresentação em que a ave pousava numa pedra. Quando o bicho aparecia na tela, a gurizada logo se oiriçava, gritava e assobiava na tentativa de enxotar o pássaro, na maior gozação (riso). Quando o pássaro alçava voou, a comoção era geral. Aplausos e muita gritaria… e olha que tudo isso e o filme ainda nem tinha começado (mais risos)”, recorda.
Nos anos 1950 e 1960, Aníbal Alencastro foi projecionista de quase todos os cinemas de Cuiabá. Era ele o responsável pelas projeções nas matinês de domingo. Vale ressaltar que Aníbal, além do Cine Teatro Cuiabá, projetou filmes no Cine São Luis (no bairro do Porto) e no Cine Bandeirantes. Tornou-se assim umas das maiores referências no assunto – e é até hoje – sendo ele responsável pela instalação dos primeiros cinemas de 35mm nas cidades de Rondonópolis, Poxoréo e Poconé.
No detalhe, Aníbal Alencastro na sala de máquinas do Cine Teatro Cuiabá, nos anos 1960. Na foto maior, ao lado do velho projetor, companheiro de tantas sessões, hoje em exposição no Museu da Imagem e do Som de Cuiabá
“Aquela magia envolvente só terminava quando aparecia na tela o famoso ‘The End’, que vinha seguido de uma frase bem grande estampada na tela do cinema: volte na próxima semana. Eu costumo dizer que o cinema imprimiu modos e modas. Os homens tinham em seus ídolos, Rodolfo Valentino, por exemplo, o galã da época, uma forte influência. As mulheres queriam se vestir igual as atrizes Mary Pickford e Pola Negri. Pelas telonas via-se o mundo todo. Era a nossa janela para futuro. De certa forma, o cinema influenciava o modo de agir e pensar das pessoas. E acho que é assim até hoje”.
Aníbal ressalta ainda que o cinema surgiu em Cuiabá bem antes das emissoras de rádio e televisão, em 1910, apenas 15 anos após a invenção do cinematógrafo, na França, pelos irmãos Lumière, considerados os pais da sétima arte. “Apesar de ser uma cidade geograficamente longe dos grandes centros, Cuiabá respirava o progresso e a modernidade. As pessoas daqui eram muito entusiasmadas com a cultura e adoravam o cinema”.
Fachada do Cine Teatro Cuiabá nos anos 1950 (Acervo do Museu da Imagem e do Som de Cuiabá)
Por muito tempo, o Cine Teatro Cuiabá permaneceu como o principal centro das atividades artísticas da capital. Era sinônimo de consumo e produção cultural. Mas a bonita história também carrega traços de melancolia com a interdição do espaço em 1996. Foram doze anos de portas fechadas. O tempo em desuso e a demora por consertos trouxeram danos às instalações e fizeram se multiplicar as histórias e lendas sobre o lugar. Reformas lentas e repletas de interrupções fizeram reparos substanciais que mantiveram as características arquitetônicas da época de sua construção, incluindo sua cor original, amarelo.
Em 21 de maio de 2009, com um concerto especial da Orquestra do Estado de Mato Grosso, o Cine Teatro Cuiabá foi entregue novamente a sociedade. Abriu novamente suas portas com uma grande cerimônia e dois meses de programação gratuita que incluía espetáculos de teatro, dança e música. Ironicamente, cinema não estava no programa.
A partir de outubro daquele mesmo ano, o espaço passou a ter gestão compartilhada entre o Governo do Estado e a iniciativa privada. O Cine Teatro Cuiabá é um dos equipamentos culturais da Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer (Secel) e continua com gestão compartilhada, nos últimos, sob a administração da Associação Cultural Cena Onze.
Cine Teatro Cuiabá nos dias atuais. Visão da plateia com 516 lugares
Hoje, o espaço abriga ainda a MT Escola de Teatro, curso superior de Tecnologia em Teatro, oferecido graças a parceria entre a Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), a Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer (Secel), a Associação dos Amigos Artistas Amigos da Praça (Adaap) e a Associação Cultural Cena Onze.
Com intensa programação mensal que inclui sessões de cinema, espetáculos de diferentes linguagens artísticas, capacitações e eventos culturais, o mais charmoso dos aparelhos culturais da capital continua a incitar reflexões e a promover a difusão do conhecimento da arte, da educação e da cultura. Vida longa ao Cine Teatro Cuiabá!