Rubem Abdalla Barroso Júnior dirigia seu Fiat Palio pela Orla do Santa Inês, em Macapá (AP), quando se deparou com uma barreira policial. Eram 3 horas da madrugada e, embriagado, ele decidiu ignorar os apelos dos policiais.
Abdalla pegou a contramão da Rua Maracá, desviando dos carros parados no acostamento, avançou o sinal vermelho e pegou a avenida Salgado Filho. A perseguição seguiu na via até que a polícia o alcançou. O vendedor ambulante, nascido em Cuiabá, recusou-se a fazer o bafômetro.
O policial Aldoney Nascimento, porém, relatou à Justiça que havia claros sinais de alteração da capacidade psicomotora de Abdalla: sonolência, olhos vermelhos, desordem das vestes, odor de álcool no hálito, exaltação, ironia e fala alterada. O caso, de 2013, acabou em condenação.
O cuiabano de sobrenome árabe acumulava prisões e antecedentes criminais. Estava fora da cadeia desde 2008, quando progrediu para o regime aberto, até ter as primeiras penas por furto extintas em 2011. Voltou ao sistema carcerário em 2018.
Já em novembro de 2022, aos 44 anos e com uma ficha extensa, Abdalla decidiu ir a Brasília para participar do acampamento golpista montado em frente ao Quartel-General do Exército.
De início, o plano era juntar-se aos milhares de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que pediam às Forças Armadas um golpe contra a eleição de Lula (PT) –chamado por Abdalla de “ladrão”.
Ele, porém, viu no movimento golpista um possível negócio: o público do QG precisava se alimentar.
“Isso aqui vai tudo para a cozinha do Abdalla”, dizia trecho de áudio enviado em grupo de WhatsApp que reunia organizadores do acampamento.
“Quem puder ajudar, tem Pix, dá pra levar a comida, água. Vamos pra cima.”
Junto do áudio, o contato salvo como Gabriel enviou uma foto das compras, com 120 garrafas de água, 24 litros de leite, 8 kg de mortadela e 15 pacotes de pão de forma.
Os primeiros 15 dias no acampamento diante do QG do Exército foram marcados pela fartura na comida.
Empresas do agronegócio doavam carnes e material para fazer churrascos que atendiam gratuitamente a todos os bolsonaristas acampados.
Os atos em frente ao quartel de Brasília se iniciaram em 31 de outubro, dia seguinte à derrota de Jair Bolsonaro para Lula na disputa à Presidência da República.
O que, à primeira vista, seria uma manifestação passageira acabou por tomar grandes proporções, com a instalação de tendas e barracas para que os bolsonaristas radicais permanecessem na área militar em prece por um golpe contra a democracia.
No feriado de Finados, em 2 de novembro, foi marcada a primeira grande manifestação em frente ao QG do Exército.
Com a mobilização nas redes sociais, milhares de pessoas chegaram a Brasília em caravanas gratuitas para inflar os atos golpistas.
Em 7 de novembro de 2022, as primeiras costelas de boi foram fincadas no chão assim que o sol nasceu.
A brasa ia lentamente cozinhando a carne, exposta para milhares de pessoas, em meio a barracas e tendas levantadas em frente ao quartel-general do Exército.
“Tá disponível. O pessoal do agro, todinho para vocês. Café da manhã, almoço, à tarde. Tá à disposição. Chegou um caminhão agora. Café da manhã, água, tudo vocês podem pegar lá, à vontade, o que vocês quiserem”, disse um produtor rural ao caminhoneiro Zé Maria, que carrega grãos de Mato Grosso para o resto do país.
Zé Maria agradeceu e, à Folha de S.Paulo, disse na ocasião que estava emocionado com o movimento.
“Depende de nós. Seis meses do ladrão no governo e o Brasil vira uma Argentina e, mais um tiquinho, a Venezuela.”
Os fartos churrascos, de graça e bancados por empresários, chamavam quase todo o público para se servir. As filas cortavam em duas a Praça dos Cristais, em frente ao QG. O negócio, custoso, não durou muito tempo.
À medida que os grandes empresários deixavam de enviar comida para o acampamento no QG do Exército, ao longo de novembro e dezembro, crescia a relevância da cozinha controlada por Abdalla.
Com dois fogões industriais enferrujados, ligados a um gato de energia, e um estoque de alimentos exposto debaixo da tenda, o espaço se tornou o principal fornecedor de comida para os bolsonaristas radicais acampados.
A maior parte dos recursos era obtida por meio de Pix, e as três refeições diárias eram gratuitas. A chave para a transferência era o CPF do próprio Abdalla, número que circulava em grupos de WhatsApp e entre os bolsonaristas hospedados na Praça dos Cristais.
Militares consultados pela reportagem contam que Abdalla era um dos interlocutores da Força com o movimento. Vez ou outra, fardados conversavam com o cuiabano para entender o clima do acampamento.
Foi numa dessas conversas que, pela primeira vez, se ouviu que Abdalla e outros membros da organização dos atos golpistas faziam parte de um grupo apelidado internamente de a “máfia do Pix”.
“Nós já tínhamos denúncia a respeito da ‘máfia do Pix’, que eram […] iam, o tempo inteiro, pedindo para as pessoas que estavam ali que fizessem Pix, exatamente com a intenção de manter o acampamento”, disse em depoimento o coronel Jorge Naime, da Polícia Militar do DF.
Preso pelos atos de 8 de janeiro, Naime ainda contou que dois grupos discutiam antes da invasão às sedes dos Poderes se deveriam descer à Esplanada dos Ministérios ou permanecer em protesto em frente ao QG do Exército.
“E a discussão dos que queriam descer contra os que queriam ficar na frente do quartel era exatamente essa questão do Pix. Chegaram a se acusar, no meio da reunião lá, que a pessoa queria ficar no acampamento porque ela queria ficar fazendo pedido de Pix.”
Naime não citou o nome de quem seriam os integrantes da “máfia do Pix” no depoimento.
A Polícia Federal realizou buscas nos endereços de Abdalla no fim de janeiro para investigar a origem dos recursos usados por ele para manter a cozinha em funcionamento.
Após os atos de 8 de janeiro, Abdalla deixou o acampamento em frente ao Quartel-General.
Parte de seus equipamentos de cozinha foi recolhida por militares do Exército na manhã do dia seguinte e incluídos em um inventário guardado no Comando Militar do Planalto. Ninguém voltou para buscar.
Abdalla foi alvo de duas ordens de prisão do STF (Supremo Tribunal Federal) pela organização do acampamento no QG do Exército.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, responsável pela execução das penas, não soube informar se o suspeito está preso ou foragido.
A assessoria do STF também não esclareceu a situação do cuiabano porque o inquérito está sob sigilo.
A reportagem tentou, sem sucesso, contato com o advogado de Abdalla.
Fonte: Diário de Cuiabá