‘Trincheiras já não resolvem; precisamos de novas alternativas’, afirma urbanista

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No ano em que se completam 10 anos da realização da Copa do Mundo em Cuiabá, o arquiteto e urbanista José Antônio Lemos dos Santos citou a importância que as obras de mobilidade realizadas na época refletem hoje na circulação da Capital mato-grossense.

Na visão dele, é difícil imaginar como Cuiabá estaria hoje sem as trincheiras construídas para a Copa. Entretanto, disse crer que elas já não são mais suficientes para suportar o alto fluxo de veículos e que é preciso pensar em novas opções.

“Essas trincheiras que foram tão importantes e são, já não resolvem mais o problema. Mas não é uma questão só de construir viaduto ou construir trincheiras, é criar novas oportunidades de circulação”, disse ele em conversa com o MidiaNews.

Entre as novas oportunidades, ele citou a importância da finalização das obras do BRT e criticou a Prefeitura de Cuiabá por tentar paralisar a obra.

José Lemos se formou em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Brasília (UnB) em 1973, foi conselheiro do CAU-MT (Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Mato Grosso) e professor da Universidade de Cuiabá.

Arquiteto e urbanista José Lemos. Foto: Andrelina Braz/MidiaNews

Confira os principais trechos da entrevista:

MidiaNews – Quando começou-se a discutir obra de mobilidade urbana para a Copa do Mundo em Cuiabá, o senhor defendia o BRT, mas a escolha na época foi pelo VLT. O VLT jamais ficou pronto e agora estamos a caminho de ter o BRT. Considera que esse modelo será bom para a mobilidade da Capital?

José Lemos – Considero que ruim é não terminar nem um nem outro. Acho que qualquer um seria bom, desde que concluísse. Como você disse, na época em que se discutia, optei pelo BRT. Não era nem por questão técnica de capacidade, era principalmente por ser uma tecnologia nacional, que usaria combustível que Mato Grosso produz e que o Brasil era o principal produtor no mundo, o biodiesel, com uma tecnologia que se tivesse qualquer problema, as oficinas especializadas estariam próximas.

Depois tinha o seguinte, já tinha na época o dinheiro aprovado, o projeto aprovado com recursos da Caixa Econômica e o prazo de construção era menor do que o  VLT. Então, uma série de motivos fizeram que eu optasse pelo BRT.

O prazo já era apertadíssimo. E se fosse discutir de novo o projeto, viabilizar recursos e fazer o projeto técnico, talvez não fosse dar, como de fato aconteceu. Não tínhamos muito tempo de discussão em função da proximidade da Copa. Então, a partir do momento que virou o VLT,  passei a ser favor do VLT para concluir.

Hoje, para mim, o mais importante é concluir e não ficar essas cicatrizes na cidade, que já prejudicaram tanto, já prejudicou o comércio e tanta gente que já se machucou atravessando as obras. Hoje, sou a favor que a obra do BRT seja concluída o mais rápido possível e não ficar nessa moagem, como diz o cuiabano.

MidiaNews – E como vê essa briga do prefeito Emanuel Pinheiro, que já tentou paralisar as obras por diversas vezes?

 José Lemos – Ele tem ao lado dele, a lei no município, que diz que as questões urbanas são de competência da Prefeitura. Mas isso não justifica paralisar uma obra que já está em andamento e que já trouxe tanto malefício para a própria cidade de Cuiabá. No meu modo de ver, não justificaria.

Não sou dono da verdade, mas acho que o pior é não ficar pronto nem um nem outro. Então, apesar dele ter a competência administrativa, controlar as questões urbanas no município, acho que nesse caso era melhor deixar a obra transcorrer.

MidiaNews – Este ano completa dez anos da realização da Copa em Cuiabá. Qual a avaliação faz do legado para a cidade na área de mobilidade?

 José Lemos – Nós tivemos, sem dúvida, muitos benefícios, a começar pelas trincheiras. É difícil de imaginar como estaria hoje Cuiabá sem essas trincheiras. Estaria praticamente tudo engarrafado. Essas obras já tinham sido projetadas cerca de 10 anos antes. Mas eram obras, como muitas outras, que a gente imaginava que se fossem feitas, ia demorar muito para viabilizar recursos por serem muito dispendiosas. Apesar disso, importantíssimas para a cidade.

Só o fato de ter aparecido a Copa é que os levou a tocarem esses projetos, então já valeu a pena [ter tido a Copa]. Temos também as novas avenidas, que até hoje são um pouco subestimadas, por exemplo, a Estrada da Guarita, em Várzea Grande, que com todo esse problema na Avenida da FEB, não ganhou destaque no direcionamento para o trânsito, onde se pode andar com uma velocidade muito maior. Entre outras obras que, por si só, valeu a pena em termos de mobilidade.

MidiaNews – O que falta avançar?

José Lemos – Falta avançar o modal do BRT. Como eu disse, essas trincheiras já estavam sendo projetadas há dez anos antes da Copa, ou seja, 20 anos atrás. Nós já devíamos estar projetando as obras de dez anos para frente de hoje.

Essas trincheiras que foram tão importantes e são tão importantes, já não resolvem mais o problema. Mas não é uma questão só de construir viaduto ou construir trincheiras, é criar novas oportunidades de circulação. Temos, por exemplo, o Rodoanel que está saindo, vai ajudar muito a aliviar a Avenida Miguel Sutil, que já não suporta mais [o fluxo que tem].

O trecho entre a rotatória do Centro de Convenções e a do Círculo Militar, é o trecho da cidade que tem maior fluxo de veículos. Porque ali tem além do Centro de Convenções, um grande supermercado, um centro médico de grande porte, outro supermercado de grande porte além de outro que vai reabrir agora, um shopping center e outro bem próximo. Então, isso daí são estruturas de geração de tráfico muito grande que precisam de apoio.

Acho interessante construir um viaduto no Círculo Militar, mas não vai adiantar muito. Então, por isso tem que criar novas alternativas, ligando os centros de bairro a centros de bairro direto, como essa Avenida do Rodoanel e a Avenida do Contorno Leste.

MidiaNews – Um projeto que tem sido discutido em Cuiabá é a construção de um viaduto saindo da antiga Lava Pés e passando sobre a trincheira do Santa Rosa. Qual sua opinião sobre essa obra?

José Lemos – Não acredito muito nessa. Até pode dar certo, mas talvez a do Círculo Militar seja mais eficiente. Mas há outras, por exemplo, na entrada no Jardim Leblon e a obra na Miguel Sutil em cima da Avenida do CPA, que na verdade é uma obra que não foi concluída, pois tinha que haver mais uma pista de cada lado. Essas obras sim têm que ser concluídas.

Agora, em termos de solução, esse viaduto [na trincheira do Santa Rosa] tenho certeza que com cinco anos estará ultrapassado.

MidiaNews –  O senhor citou também a rotatória do Círculo Militar, que é outro ponto complicado no trânsito de Cuiabá. Uma trincheira ali também não resolveria o problema?

José Lemos – Também não. Pode dar um alívio, mas tem que pensar em outras alternativas. Inclusive, no Plano Diretor tem uma pista nova que seria a Beira Rio Sul, que pegaria ali onde tem aquela rotatória da Barão de Melgaço junto com a Miguel Sutil e seguiria pela margem do rio até chegar na Avenida Antártica. São alternativas que precisam ser revistas para ver se ainda são viáveis.

Mas precisa pensar em alternativas novas que arejem a cidade, para não ficar na mesma de hoje.

MidiaNews –  Não acha que seria mais inteligente investir em infraestrutura para transporte público ao invés destas grandes obras feitas para carro?

José Lemos – Claro. Isso tudo é muito complexo e começa com o pé. Começa pelas calçadas e Cuiabá parece que não tem calçada, tem pistas de obstáculos das Olimpíadas. Pula na água, pula na lama, pula degrau. Não é isso? Apesar de ter lei, que a calçada tem que ter no mínimo 2,5 metros com 2% de declividade e não pode ser feito com material escorregadio, tudo que você vê é ao contrário disso.

Então, a resposta para essa pergunta é que devemos começar pelo pé. Depois vai para a bicicleta, para o carro, ônibus, BRT até o aeroporto.

Começar pelo pé, mas não esquecer do aeroporto e parar com esse papo de que o aeroporto é de Várzea Grande ou de Cuiabá. Cuiabá cresceu, por isso chama região metropolitana de Cuiabá.

MidiaNews – Quando foi construída, a Arena Pantanal era considerada por muita gente, especialmente a imprensa nacional, um elefante branco. Vendo o estádio sendo usado em jogos da Série A, o que diria para os críticos daquela época?

José Lemos – Na época, a gente também discutiu a viabilidade, mas sempre fui a favor da Copa. Não pela Copa em si, pelo jogo de futebol, mas pelos investimentos públicos e privados que ela traria.

Tem a fábrica de cimento lá de Aguaçu, que veio por causa da Copa, um shopping novo, diversos empreendimentos, 15 novas torres entre a ampliação de antigos hotéis e criação de novos, investimento público em vias, em trincheiras, em viadutos, essa coisa toda.

A Arena é um dos melhores projetos para mim, até pode ser considerado o melhor desses 12 que foram construídos. Porque ele é um partido, parece que foi feito para Cuiabá e foi. É aberto nos cantos, ventila. Aí muita gente fala “ah, mas continua quente”, mas aí para não ficar quente só se mudasse para Groelândia.

Então é um projeto diferente. É uma nave espacial que pousou aqui e que não sabemos pilotar direitinho ainda. Mas já trouxe muitos benefícios, fora a divulgação da cidade internacionalmente.

MidiaNews – O avanço do time do Cuiabá também ajudou.

José Lemos – Um dos benefícios foi o crescimento do time do Cuiabá. Já entrevistei algumas pessoas, inclusive o Cristiano, o presidente do Cuiabá, e ele declarou que eles praticamente estavam desistindo de investir no clube, mas quando saiu a notícia em 2009, que Cuiabá seria uma das sedes da Copa e iria ser construído esse novo estádio, eles entraram de cabeça no projeto e hoje está sendo esse sucesso nacional.

Então, para esse pessoal que criticava, tem gente que até hoje critica a Copa do Mundo, mas foi uma coisa muito boa, gerou muito emprego e valeu a pena.

Falavam muito que não precisava destruir o Verdão, podia construir a Arena em outro lugar. Até isso achei que foi bem feito, desde que viesse realmente investimento, seria um bom preço a pagar pelo Verdão. Construir a arena onde ela está, os benefícios ficaram dentro da cidade, se fosse fora, indo para a Chapada ou para a Guia, não haveria tantos benefícios para a cidade.

MidiaNews – A cada ano que passa, o Centro Histórico de Cuiabá parece mais decadente. Acha que há solução para reverter a degradação ali?

José Lemos – Acho que, tranquilamente, tem e existem muitos lugares do mundo que foi feito isso. Em Fortaleza, por exemplo, tem um centro histórico muito parecido com o de Cuiabá, mas foi revitalizado, modernizado.

Muitas coisas podem ser reconstruídas no lugar daquilo que de fato existiu, depois do que caiu com o tempo, como aconteceu nas cidades da Europa, que foram reconstruídas de maneira quase igual, externamente bem parecida ao que existia antes.

Olha o que foi feito no Sesc Arsenal, que coisa espetacular. É um elemento do passado que foi feito uma intervenção que garante a participação dessa peça do passado no futuro que estamos vivendo. E esse Centro Histórico, temos muitos instrumentos que possibilitam ajudar.

Muita gente fala que o centro histórico está morto. Mas se você for a ruas ao lado da Catedral, Rua 13 de Junho, Rua Joaquim Murtinho, na Antônio Maria, estão fervendo de gente. Um dos motivos é porque é o lugar que tem mais acessibilidade, pois praticamente toda a mobilidade da cidade vai para o Centro. E, apesar de estar todo “estrupiado”, o centro é o coração da cidade.

Mas se você der um mínimo de atenção, de respeito, consegue sacudir esse Centro e revitalizá-lo. Uma das coisas, por exemplo, que trabalhei muito tempo tentando, junto com muitas outras pessoas, tentando revitalizar o centro, é o rebaixamento da fiação.

Esse é o primeiro projeto que vai impulsionar os demais. Não precisa ter esse mundaréu de fio que tem hoje, o ideal é um fio sozinho. Não tem nada mais anti-histórico do que exigir do proprietário que ele restaure uma fachada, mas se deixa na frente um poste cheio de fio.

É um projeto caro, mas indispensável. Mais caro é manter o centro-histórico desse jeito.

MidiaNews –  A quantidade de imóveis abandonados e sem manutenção não demonstra que é preciso uma intervenção grande do poder público?

José Lemos – Sem dúvida. Mas ali não é só má vontade do poder público, tem outras questões como as de herança, que terminam prejudicando bastante. Então, precisa o poder público alavancar isso.

Tem gente que está tentando investir no centro, mas fica sozinho. Se tivesse uma boa propaganda, um investimento, como por exemplo começar a tirar essa fiação, chama investimento. Se você tiver um espaço urbanizado, limpo, iluminado, o bom uso expulsa o mau uso. Se fosse feito isso, em pouco tempo aquilo estaria muito mais vivo do que hoje.

MidiaNews –  E por que o Centro Histórico de Cuiabá chegou à situação atual?

José Lemos – Primeiro, houve um tombamento federal, que sou favorável. Mas esse tombamento não foi para frente. Porque tomba uma coisa que é para dar valor, para investir naquilo. Então, uma boa parte da população ficou meio zangada com o Centro Histórico achando que lá está desse jeito por causa dele, mas não é por causa dele. É por que quem deveria estar dando atenção não está.

O Centro Histórico de Cuiabá diz respeito não só a Mato Grosso ou a Cuiabania, diz respeito ao Brasil. O tombamento federal terminou sendo bom porque preservou. Mas o tombamento não foi seguido de outras medidas. É como você comprar um carro e não colocar gasolina.

O máximo que a gente faz é ficar chorando sem tomar a iniciativa. Teria que ser trabalhado com mais cuidado, com mais carinho e é mais fácil do que a gente pensa.

Se fosse uma coisa abandonada, sem nenhuma circulação, ia ser difícil. Mas aqui não, o sangue da cidade está passando ali pelo Centro e isso daí é uma coisa importante para gente trabalhar.

Fonte: Midianews