O médico imunologista cuiabano Celso Taques Saldanha, membro da Comissão de Biodiversidade, Poluição e Clima da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI), afirmou que, com as atuais condições climáticas, Cuiabá já é uma cidade inabitável.
Celso, que há alguns anos deu uma entrevista “prevendo” que a cidade estaria inabitável em duas ou três décadas, agora analisa a situação atual da Capital, que enfrenta uma onda de calor com temperaturas de até 5°C acima da média.
“Eu te pergunto: uma cidade que faz 42 graus e 15% de umidade é habitável? Para mim não! Habitável com qualidade de vida não acho que seja. Para quem tem ar condicionado, umidificador, até é suportável, mas muitos ainda não têm”, afirmou ele em entrevista ao MidiaNews.
O médico se baseia em resultados da sua dissertação de mestrado em Ciências da Saúde na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), desenvolvida em meados da década de 2000, quando pesquisou sobre a relação da geografia de Cuiabá com o aumento de alguns problemas de saúde.
Na entrevista, Celso ressaltou que idosos são a população que mais sofre com o clima seco. Além disso, quem sofre de doenças como asma e dermatites, veem seus quadros piorarem com as condições do clima nesta época.
Confira os principais trechos da entrevista:
MidiaNews – Em 2020, o senhor afirmou que em 20 anos Cuiabá ficaria inabitável. Não teme que isso ocorra antes?
Celso Taques Saldanha – Cuiabá era uma cidade agradável, com muita natureza, mas que não foi respeitada em muitos aspectos durante o seu desenvolvimento. Por isso, chegamos à situação que estamos hoje.
Eu te pergunto: uma cidade que faz 42 graus e 15% de umidade é habitável? Para mim não. Habitável com qualidade de vida não acho que seja. Para quem tem ar condicionado, umidificador, até é suportável, mas muitos ainda não têm. Para uma vida com qualidade já não é mais habitável.
MidiaNews – O que seria habitável?
Celso Taques Saldanha – É viver bem, sair da sua casa, passear em um parque, levar sua família, fazer programas ao ar livre. Hoje temos que ficar em casa no ar condicionado, ou ir para lugares climatizados, mas e quem não tem condições?
Cuiabá era uma cidade cheia de córregos, o que fizeram? Canalizaram e aterraram todos. Um desenvolvimento desenfreado e sem respeito pela natureza, até que chegamos à situação dos dias de hoje. A região em volta queima demais, nosso cerrado, pantanal. Cuiabá está dentro de um caldeirão e isso agrava a saúde da população.
MidiaNews – Cuiabá fica em uma baixada. Isso favorece as altas temperaturas?
Celso Taques Saldanha – Nesse meu trabalho de dissertação, que já tem quase 20 anos, pesquisei sobre os atendimentos de casos de doenças como a asma e sua relação com o clima em Cuiabá, e também com as queimadas. Nesse trabalho, comecei a estudar Cuiabá e acabei indo também por outro caminho, mais para a geografia. Vi que Cuiabá é uma baixada, como se fosse um ‘buraco’.
O que significa isso? A região que já possui uma alta insolação, também tem alta pressão atmosférica e baixa velocidade do vento. O vento não circula. Em Brasília, por exemplo, o vento chega a 4 m/s, em Cuiabá geralmente em média é 0,8 m/s.
E com todas essas características, uma região quente e de pouca reciclagem do ar, e nesta época se une as queimadas, tudo só piora. As queimadas despejam na atmosfera grandes quantidades de materiais tóxicos, que com a alta insolação típica da região, se ‘multiplicam’. Com a baixa velocidade do vento essas partículas ficam aqui, piorando a qualidade do ar e sendo nociva a saúde.
MidiaNews – Quais os impactos que o calor provoca na saúde dos cuiabanos?
Celso Taques Saldanha – É assustador o número de pessoas que procuram o atendimento com problemas como asma, diarreia, sinusite, resfriados, lesões de pele, agravamento de dermatite atópica, dentre outras alterações. Todas essas foram observadas um aumento nesta época de estiagem.
O nosso trabalho mostra que houve esse aumento de atendimentos e, só não tenho os dados sobre mortalidade, porque trabalhava somente no atendimento do Pronto Socorro.
MidiaNews – Que tipo de impactos as queimadas do Pantanal e da Amazônia podem provocar na saúde dos cuiabanos?
Celso Taques Saldanha – Muitos. Isso torna a cidade inóspita. As queimadas são um grande agravo para a saúde humana e a nossa região queima demais, é preciso manter a vigilância alta.
Já pesquisei sobre isso e vi que o Cerrado, diferente da Amazônia, em que a floresta é alta, as árvores são mais baixas, mas crescendo para baixo, portanto suas raízes são muito profundas. Quando se queima o cerrado, se queima as raízes também.
Então lançam grande quantidade de material orgânico, que se transformam em gases do efeito estufa. Além de destruir todo o bioma, bactérias, fungos, animais, é uma destruição total. E Cuiabá está ali do lado, cercada de tudo isso e com uma baixa circulação de vento. Com isso, a fumaça fica presa e Cuiabá está dentro de um caldeirão.
MidiaNews – Há risco de morte de crianças e idosos por causa do calor de Cuiabá?
Celso Taques Saldanha – Há o risco e as mortes estão aumentando. Uma das principais doenças é a pneumonia. O que causa pneumonia? São os fatores que desfavorecem a proteção do organismo, como o calor extremo e o ar seco.
O ar em Cuiabá nessa época, não é só seco, é cheio de poluentes, com combustíveis fósseis da frota da cidade e gases das queimadas, sem contar a poeira. Como a cidade tem pouca reciclagem do ar isso fica preso e a população fica respirando isso.
Quem mais sofre com a umidade baixa são os idosos, que tem menos água no corpo do que adultos ou crianças e por isso desidratam mais rápido. Crianças tem mais água, para manter a homeostase, mas qualquer variação elas podem desidratar e podem vir a óbito.
Nossas narinas quando o ar passa em 20% elas vão umidificar esse ar, ali vai ressecar o nariz, causando até sangramentos. O ar chegando seco na garganta vai inflamar a garganta, inflamar os brônquios, pode causar pneumonia. Essa é a doença que mais mata idosos e crianças. É uma das doenças que ainda mais mata no Brasil. E Cuiabá está isso ai. Agora eu pergunto, isso é habitável?
Cuiabá está entre as cidades mais poluídas do mundo em determinadas épocas do ano com tanto material que é lançado na atmosfera pelas queimadas na região.
MidiaNews – Como proteger os mais vulneráveis em um ambiente tão hostil?
Celso Taques Saldanha – Primeiro temos que fazer a cidade ser menos quente. Orientar as construções, casas populares e de baixo poder aquisitivo, sendo construídas como um forno. Precisa-se pensar melhor nelas, dar projetos sustentáveis e mais agradáveis para enfrentar o calor, nos moldes de Cuiabá. Não vejo isso nessa cidade.
É preciso olhar para os mais pobres, pesquisar construções mais baratas e que reflitam o calor, façam ter mais ventilação, já que Cuiabá não tem tanto vento.
Segundo, levar a sério o problema da nossa arborização. Hoje não é mais uma cidade arborizada. Replantar e com árvores grandes, não pequenas ou palmeiras, isso não resolve. Árvores diminuem a temperatura e melhoram a qualidade do ar, mas a cidade não tem projeto.
Essas medidas já vão ajudar bastante a diminuir os índices das doenças respiratórias e dos problemas de saúde provocados pelas condições climáticas adversas da cidade.
MidiaNews – O senhor trabalhou atendendo crianças no antigo Pronto Socorro de Cuiabá. A incidência de doenças respiratórias em Cuiabá é algo preocupante?
Celso Taques Saldanha – Sim. Na nossa pesquisa identificamos que 12% de todo o atendimento de casos no Pronto Socorro na época da estiagem de Cuiabá eram de asma. Era assustador. Isso é só de asma, mas há várias doenças que aumentam nessa época, principalmente respiratórias e de pele.
Quando fizemos a pesquisa, vimos que na época da seca a quantidade de crianças que chegam ao pronto atendimento com asma é altíssima. Época como a que estamos agora, entre agosto e outubro principalmente.
Para você ter uma ideia, uma boa umidade para chegar nas nossas vias aéreas é de 65% e em Cuiabá, nesse período, temos umidade de 20%, 15%. Isso fere nossas mucosas respiratórias e ocular, além da nossa pele, aumentando essas doenças, principalmente asma, resfriados, sinusite e dermatite. Então, Cuiabá ficou uma cidade inóspita.
MidiaNews – A localização geográfica potencializa o calor de Cuiabá?
Celso Taques Saldanha – Com certeza. Estamos em uma baixada onde não venta, temos alta incidência de sol e alta pressão atmosférica.
Uma geógrafa da UFMT fez um estudo sobre as ilhas de calor em Cuiabá. Se você andar na cidade, na região da Avenida do CPA, no Centro, em regiões onde tem muito prédio, muito asfalto e poucas árvores, está muito calor. Então a população que vive ou trabalha ou circula ali sofre mais.
Em outras regiões mais afastadas ou perto de terrenos com mata, como próximo ao Centro de Eventos do Pantanal, você já sente a diferença na temperatura, pois a vegetação faz ser mais fresco.
Basta reparar a Arena Pantanal. Ali não tem quase nenhuma árvore ao redor. É um lugar cheio de cimento, concreto e tem o nome de Pantanal. Veio com uma opção de sustentabilidade, mas não tem árvores.
Não é habitável viver com umidade baixa, não é habitável ter temperaturas acima de 35, 37 graus, não é habitável ficar respirando gases tóxicos e nocivos á saúde, não é habitável viver em um lugar que não venta.
Não sei como com todas essas condições Cuiabá ainda está crescendo, para você ver como temos um povo trabalhador e que confia na sua terra.
MidiaNews – Cuiabá é chamada de Cidade Verde, mas tem perdido muita vegetação por causa da expansão imobiliária. Como reduzir que isso provoca no clima?
Celso Taques Saldanha – Cuiabá era uma cidade cheia de córregos e de matas, mas um desenvolvimento desenfreado e sem respeito pela natureza fez com que ficássemos com muito pouca arborização urbana, poucos córregos.
Quando plantam árvores aqui, plantam de pequeno porte ou mantém com uma poda agressiva de modo que a árvore vai demorar 50 anos para dar uma sombra. Como pode isso?
A cidade está crescendo desordenadamente e ninguém está fazendo nada bem feito e entendendo as características da nossa cidade. As construções não estão respeitando Cuiabá, estão aumentando as ilhas de calor e a cidade está cada vez mais inabitável.
Temos que localizar onde estão as ilhas de calor e fazermos trabalhos para minimizar esses efeitos, orientar a população e as construções. Além de claro, aumentar a arborização.
Fonte: Midianews