A história de uma jovem brasileira morta numa chacina em Pedro Juan Caballero, no sábado passado, revela um caminho que vem sendo feito por muitos estudantes que têm procurado o país para cursar Medicina. Era o caso de Rhannye Jamilly Oliveira Borges, de 18 anos. Alegre, desinibida, amiga e apaixonada por música — ela tocava violão e cantava — , a moça sonhava se tornar médica no país vizinho, na Universidade Central do Paraguay, no Departamento de Amambay. No último fim de semana, saindo de uma boate junto com outras três pessoas, entre elas um suspeito de integrar uma quadrilha de tráfico, Rhannye perdeu a vida. A camionete branca em que o grupo estava foi fuzilada.
Num dos últimos posts que fez em redes sociais, Rhannye, que era de Mato Grosso, gravou um vídeo para a familia. Nele, a estudante, que sempre foi religiosa, canta a letra da música gospel, que fala em saudade e do desejo de voltar para a casa. “Me leva para casa, eu quero voltar pois longe de ti não é o meu lugar. Eu corro depressa para te encontrar, de braços abertos, como alguém que esqueceu. Como pode me amar sabendo dos meus pecados? Sabendo que o que faço de errado, como pode me amar assim? Como pode me amar, Deus, sabendo que eu fugiria se a porta estivesse aberta. Como podem me confiar e ainda me pega quando estou caindo e me abraça, quando estou chorando seguras minhas mãos”. O sepultamento da jovem foi no domingo passado, em Curvelândia, pequeno município de MT, com pouco mais de cinco mil habitantes, onde ela vivia com a família, antes de se mudar para a cidade paraguaia.
O pai de Rhannye, Márcio Alves, de 47 anos, conversou ontem com o GLOBO e lembrou que relutou muito em autorizar a mudança da filha para outro pais. Ele, que trabalha num mercado da cidade, disse que sonho da estudante de se tornar médica estaria acima de suas possibilidades financeiras se fosse realizado no Brasil. Lá na UCP, em Pedro Juan Caballero, a mensalidade do curso ficava em torno de R$ 2,5 miil enquanto o curso numa faculdade particular de São Paulo custaria R$ 8,5 mil mensais. Estima-se que cerca de 10 mil estudantes de medicina brasileiros estejam fazendo o curso no Paraguai.
— Meu Deus, era o sonho dela! Eu falei tanto para ela pensar bem, tentar uma alternativa por aqui, que eu pudesse pagar, ou esperar porque ela ainda era muito jovem. Mas ela dizia que se não fosse médica não seria mais nada na vida. Era um desejo apaixonado dela, desde pequena. Mesmo com medo, a gente via na permanência dela lá uma oportunidade de ela estudar aquilo que sempre quis. Foi com todas as orientações possíveis, alugou um quarto na casa de uma senhora paraguaia evangélica, como eu, mãe de três filhos. Eu achava que tinha encontrado a melhor solução, que ela estaria protegida. Pelo que soube, ela não conhecia aquelas pessoas. Chegou à festa até separadamente. Foi a carona da morte — conta o comerciante, acrescentando que nunca foi procurado por autoridades paraguaias ou brasileiras, apesar da grande repercussão do caso pelo fato de a filha do intendente de Pedro Juan Caballero, capital do Departamento de Amambay, ter sido executada na mesma ação criminosa. Márcio não acredita que Rhannye fosse amiga da filha do intendente.
A última vez que ele viu a filha foi quando a deixou lá no Paraguai, em fevereiro deste ano. Márcio contou que trocou mensgens com Rhannye um dia antes do assassinato e não percebeu nada errado. Ele conta que ela nunca demonstrou insatisfação nem vontade de desistir. Há alguns dias, voltou a falar com a filha sobre a possibilidade de ela conseguir alguma transferência ou bolsa para voltar ao Brasil. Aluna que sempre “precisou de um puxão de orelha do pai” para focar nos estudos, Márcio diz que Rhannye estava indo bem e tirando boas notas.
— Ela era uma criança num corpo de mulher. Sempre foi assim. A gente sempre a acompanhou de perto, e ela era uma garota muito boa, carinhosa. A gente procura dar o melhor para os filhos, aquilo que achamos que vai protegê-los — diz o pai, separado da mãe de Rhannye há 10 anos, período em que ela se dividiu entre a casa dele e a dos avós, mas sempre perto de seu convívio.
Para ele, que conhecia a paixão da filha por música, a última gravação, em que ela canta muito emocionada, só ganhou significado especial após os trágicos acontecimentos:
— Agora, quando eu ouço, parece uma despedida.
O alvo do ataque, de acordo com a polícia do Paraguai, seria Osmar Vicente Alvarez Grance, de 32 anos, investigado por ligações com traficantes de lá e também com uma facção paulista. Outra hipótese para o crime é que Osmar, conhecido como Bebeto, teria namorado Mirna Keldryn e provocando ciúmes em Faustino Ramón Aguayo, preso na penitenciária de Pedro Juan Caballero. Ele é acusado de ter traficado cerca de três toneladas de drogas em 2019. Na quinta-feira, agentes encontraram, durante uma inspeção, Ramón ao lado de Mirna, que é filha do secretário de Salubridade e Higiene Oscar Romero, que já foi intendente da cidade.
O Brasil e Paraguai estão juntos numa força-tarefa para combater as disputas de facções rivais na fronteira, que se intensificaram nos últimos dias. Desde sexta-feira, oito pessoas já foram assassinadas. A outra estudante brasileira de medicina morta, que também estava no veículo alvejado no sábado, era Kaline Reinoso, de 20 anos.
Fonte: Folhamax