Crise econômica força imigrantes haitianos radicados em MT a se arriscarem em rota perigosa rumo aos EUA

Fonte:

O haitiano Krystofer Vandross deixou Cuiabá no começo do ano. Solteiro, ele morava sozinho em um bairro na periferia da capital mato-grossense. Com o salário mínimo que recebia em uma empresa de carvão, se desdobrava para pagar o aluguel de uma quitinete, arcar com os custos de alimentação e ainda enviar remessas em dólares — que se tornaram cada vez menores devido à desvalorização do real — para familiares que ainda hoje vivem no Haiti. As informações são do site Olhar Direto.

Depois de passar seis anos vivendo no Brasil, Vandross pediu para ser demitido e com a multa rescisória decidiu organizar a sua entrada de forma irregular nos Estados Unidos. Ele, porém, nunca chegou até lá. Seu corpo foi resgatado pela guarda fronteiriça colombiana em fevereiro deste ano, ainda na floresta de Darién, fronteira de selva considerada uma das mais perigosas do mundo, localizada entre Colômbia e Panamá, países de trânsito nesta rota.

Fique atualizado: Entre em nosso grupo de WhatsApp e receba as notícias mais importantes do dia clique aqui

Krystofer Vandross, de fato, nunca existiu. `Porém, sua história e trajetória são reais. Ele é um personagem fictício criado pela reportagem para ilustrar a realidade enfrentada por cada vez mais haitianos radicados no Brasil. Uma década após o início do êxodo de cidadãos haitianos pela América Latina, a migração da nação caribenha chega a um novo capítulo, onde, desta vez, têm feito um movimento contrário, de evasão.

De acordo com o Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), organização vinculada ao Ministério do Trabalho (MTb), por meio do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), e a Universidade de Brasília (UnB), entre 2010 e 2019 o Brasil recebeu 54.182 imigrantes de longo termo do Haiti. Isto é, aqueles que permanecem por um período superior a um ano no país.

Cuiabá e Várzea Grande, por sua vez, abrigam cerca de sete mil imigrantes deste número, segundo a Associação de Defesa dos Haitianos Imigrantes em Mato Grosso (Adhimi-MT). Aqui, conforme apurou Olhar Direto, seguindo a tendência nacional, também tem se tornado grande o número de haitianos que têm deixado o estado e enfrentado uma rota perigosa rumo aos EUA.

Incentivados pela necessidade de melhores condições de vida, causada em grande parte pela crise econômica brasileira sem precedentes, agravada pela pandemia, a ausência de perspectiva de estabilidade financeira, inclusive por fake news de uma suposta flexibilização dos trâmites migratórios na fronteira dos EUA sob a gestão de Joe Biden, é cada vez maior o número de imigrantes que se arriscam.

“Essa rota da América do Sul para a América do Norte, utilizada por haitianos, venezuelanos, cubanos, etc, não é algo novo, é algo que já existe há muitos anos. O que é novo é que ela tem se intensificado, muito fortemente, em 2021. Houve uma queda no ano passado, por conta da pandemia, mas em 2021 esse número não só voltou a aumentar, como já superou os números de 2019”, explica Guilherme Otero, um dos coordenadores de projetos da Organização Internacional para as Migrações no Brasil (OIM), braço da Organização das Nações Unidas (ONU) dedicada ao monitoramento do fluxo migratório ao redor do mundo.

A longa travessia 

No mês em que a crise migratória ganhou contornos dramáticos com a cena de mais de 12 mil migrantes, em sua maioria haitianos, acampados embaixo de uma ponte entre o município de Ciudad Acunã, no México, tentando ingressar na cidade Del Rio, nos EUA, a reportagem conversou com haitianos que vivem em Cuiabá. Em caráter de anonimato, eles compartilharam detalhes da travessia que muitos deles têm enfrentado na busca de oportunidades, tanto para eles próprios, quanto para familiares que até hoje vivem situações de extrema vulnerabilidade social no Haiti.

O percurso perpassa o Peru, Equador, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, Guatemala e México. Do Brasil até a fronteira mexicana com os EUA, a viagem pode levar até um mês. O perigo das rotas alternativas — pensadas de forma a desviar de postos de controle fronteiriços —, a falta de água e comida em alguns trechos torna frequente a morte de muitos haitianos no caminho, seja por desnutrição ou desidratação.

“Eles pegam ônibus aqui para chegar até o México, é perigoso demais. Tem pessoas que passam fome, porque tem lugar que está sem água, não tem comida e morre de fome, tem lugar que pega barco também”, conta à reportagem um dos haitianos entrevistados.

Uma haitiana que morava aqui, ela estava grávida, e na rota, no Panamá, ela começou passar mal e faleceu, antes de chegar ao México.

Entre as motivações, os imigrantes que moram em Cuiabá contam que a principal consiste na falta de oportunidades e o salário mínimo incompatível com os custos de vida no país. Aqui, a maioria deles mora de aluguel, tem que comprar comida e, além desse gasto, ainda tem que fazer transferências em dólares para parentes que dependem deles no Haiti.

“A situação nossa aqui tá muito difícil. Por exemplo, no serviço [você] ganha R$ 1.200 e você vai pagar aluguel, vai comprar alimentação … Tem muitos familiares também para ajudar [aqui] e também para mandar dinheiro lá [no Haiti]. Quando vai mandar 100 USD, você precisa de R$ 600 e pouco. Afeta nós porque o salário também não dá”, relata outro cidadão da nação caribenha, que atualmente ainda está radicado em Cuiabá.

“Aqui é grande [o número de haitianos que querem ir embora], mas já foram bastante. Começou em 2018, 2019 e com a pandemia aumentou”, completa.

Rafael Lira, secretário da Adhimi-MT, cita, inclusive, relatos de haitianos de Cuiabá que morreram tentando chegar aos EUA. “Uma haitiana que morava aqui, ela estava grávida, ela foi com o marido, e na rota, no Panamá, diante do trajeto pesado, ela começou passar mal, não resistiu e faleceu, antes de chegar ao México, que é o destino final antes da fronteira dos EUA”.

De acordo com a plataforma Projeto de Migrantes Desaparecidos, da OIM, 3.221 migrantes perderam a vida na fronteira dos Estados Unidos com o México desde 2014. Entre as principais causas de morte neste percurso figuram: afogamentos; falta de comida e água; acidentes em transporte; e causas desconhecidas.

A floresta colombiana de Darién, onde o personagem fictício da reportagem foi encontrado morto, apenas neste ano foi o palco da travessia de 46 mil pessoas, entre eles os haitianos. O número é o dobro do que foi registrado em 2019, segundo a OIM.

Para sair do Brasil, muitos dos imigrantes haitianos optam por cruzar a fronteira do Brasil com a Bolívia, especificamente no ponto fronteiriço da cidade de Corumbá, que está localizada no estado de Mato Grosso do Sul, com a cidade de Guayaramerin, já em território boliviano. Nos últimos meses, por semana, cerca de 280 haitianos têm deixado o país através deste ponto, totalizando assim 1.120 imigrantes saindo mensalmente. A informação foi dada ao Olhar Direto pela OIM Brasil, que teve acesso aos dados da organização no país andino.

“Eles viajam em grupos, de vez em quando grupos grandes, de vez em quando grupos menores. São números que a gente usa como base, referência, mas na prática é muito difícil de saber porque a fronteira [do Brasil com a Bolívia] é muito grande, e muita gente entra pela floresta, não passa pelos pontos fronteiriços, enfim, pelo menos é uma referência para a gente saber mais ou menos quantos são”, explica Otero.

Perda da qualidade de vida no Brasil

Quando os primeiros haitianos chegaram ao Brasil em 2010, o país caribenho enfrentava os impactos econômicos e sociais de um terremoto que havia atingido mais de três milhões de pessoas, matado cerca de 300 mil e desencadeado o primeiro fluxo migratório de haitianos pela América Latina. Naquela mesma época, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro registrava um crescimento de 7,5%, um número que contrasta com o atual cenário da economia brasileira.

No segundo semestre deste ano, o PIB brasileiro registrou crescimento de apenas 1,8%. Isto depois de passar um ano e meio registrando taxas de crescimento negativas que variaram entre -2,1% e -4,1%. O número por si só ajuda a compreender o nível da deterioração da qualidade de vida que muitos haitianos enxergavam no Brasil, e que nos últimos anos deixaram de enxergar.

 

“Como eles vieram a partir de 2011 e pegaram aquela demanda de trabalho gigantesca que teve na Copa [do Mundo de 2014] e hoje em dia não está tendo tanta oportunidade de emprego, eles estão buscando outras oportunidades, que é ir para os Estados Unidos”, comenta uma atendente que preferiu não se identificar da Western Union, loja de câmbio localizada no bairro Goiabeiras, em Cuiabá, onde muitos haitianos realizam a conversão de reais para dólar.
Com alta do dólar e desvalorização do real haitianos não veem perspectivas no Brasil. (Foto: Rogério Florentino/Olhar Direto).

Lira, que tem longa experiência como ativista pela causa migratória, principalmente na situação haitiana, afirma que esse agravamento econômico, sem dúvida, intensificou o novo êxodo migratório de haitianos, sobretudo, com o advento da pandemia da Covid-19.

“O nosso governo não está muito favorável, a situação econômica do país se agravou. Isso só motivou, novamente, a intensificação desse movimento. Tem a questão do trabalho que não está sendo fácil, o nível do desemprego só aumenta, empresas fechando”, pontua.

Em Mato Grosso, o secretário da Adhimi-MT também reitera que o movimento de imigrantes haitianos que estão deixando o país é maior do que os que estão chegando, acompanhando a tendência que vem sendo percebida no país todo. “A saída tem sido bem maior que a entrada, a entrada deles está meio tímida, porque o foco deles agora é os EUA, o foco não é mais o Brasil”.

Expectativa com discurso pró-imigrante do Governo Biden

As organizações que atuam neste enfrentamento dos desafios relacionados à migração destacam que a situação enfrentada pela comunidade haitiana também está relacionada com a chegada do democrata Joe Biden ao poder nos EUA. Com um discurso interpretado como pró-imigrante, Biden substituiu o republicano Donald Trump, que possuía uma ofensiva que ele apontava como cruel.

A Adhimi-MT explica que esse aceno do governo Biden criou a ilusão de que o país norte-americano adotaria uma gestão que facilitaria os trâmites migratórios, mesmo para aqueles que o fazem de forma irregular, como ocorre com a maior parte dos haitianos.  “Com esse novo governo, eles criaram essa expectativa. Diante de um discurso mais humanista, mais pro-imigrante, eles acharam que a coisa ia ficar mais fácil e aí está acontecendo o que nós estamos vendo aí”, diz Rafael.

Discurso de gestão Biden teve influência no ‘boom’ da migração na fronteira com o México. (Foto: Ryan Collerd / Bloomberg via Getty Images file).

Para a OIM, essa motivação está fortemente baseada em informações falsas que são difundidas em diversos meios. A organização ainda esclarece que essa esperança infundada acomete não apenas os haitianos, mas também outros países da América, inclusive o Brasil.

“O primeiro é a questão de boatos, às vezes fake news mesmo, de que os EUA estariam mais abertos a receber migrantes, a partir do governo Biden. Isso tem impactado muitos migrantes da América Central, México e até mesmo brasileiros. Isso parece que é algo que realmente tem despertado nas pessoas esse [pensamento]: ‘bom, agora é o momento de ir”, conta Otero.

“Mas a gente sabe que apesar de ter mudado algumas políticas nas fronteiras, eu diria que no geral continua tão difícil quanto era no passado para entrar nos EUA”, complementa.

Associação desencoraja movimento e articula entrada facilitada de haitianos em MT

Nos últimos dias, 30 crianças brasileiras foram deportadas pelos EUA para o Haiti, em meio a essa nova etapa da crise migratória haitiana. As crianças estavam acompanhadas de pais haitianos na fronteira do México com EUA, no mesmo lugar onde estão retidos os milhares de haitianos citados no início da reportagem.

Por temer esse perigo, em Mato Grosso a Adhimi-MT declara que condena e desencoraja este tipo de trajeto — que ocorre de forma irregular — adotado pelos haitianos radicados no estado. “A gente aconselha o contrário, que não se faça pela insegurança, porque a gente tem visto mortes, casos de estupro, acidentados”, diz Rafael.

Em contraste com o movimento, a organização tem articulado a entrada facilitada de haitianos que vivem no estado e ainda tem parentes no Haiti. A ação é motivada, principalmente, pelos impactos dos terremotos do mês passado que mataram mais de 2 mil pessoas e deixou mais de 12 mil feridos e, além disso, o agravamento da crise economica e conflitos políticos, que culminaram recentemente, por exemplo, no assassinato do presidente, Jovenel Moise, no último dia 7 de julho.

“A associação está articulando para facilitar a entrada de haitianos que têm familiares aqui sem o visto. Esse familiar que tá no Haiti, não [vai] precisar emitir visto lá na embaixada do Brasil no Haiti pra vir pra cá, legalmente. Existe a possibilidade de, através de uma liminar da justiça, ele acessar aqui de avião sem precisar de visto”, finaliza.

Para colaborar 

Interessados em colaborar com a Adhimi-MT, seja para apoio jurídico ou social nas ações, podem entrar em contato com o presidente da organização, Clercius Monestine, neste número: 65 99306 – 9588. O secretário da associação Rafael Lira pode ser encontrado a partir deste outro telefone: 65 8128-7126. A conta da associação no Instagram pode ser acessada neste endereço (CLIQUE AQUI).

Fonte: Olhar Direto