A Câmara Municipal de Salvador aprovou, na última quarta-feira (24), um projeto de lei inédito no Brasil que pretende “combater a cristofobia”. A proposta, de autoria do vereador Cezar Leite (PL), segue agora para sanção ou veto do prefeito Bruno Reis (União Brasil). Se confirmada, a lei proibirá o uso de símbolos cristãos considerados ofensivos, sensuais ou pejorativos em eventos culturais, como fantasias de Carnaval ou apresentações artísticas.
O texto prevê multa de três salários mínimos para pessoas físicas, blocos de Carnaval, camarotes e empresas que descumprirem a regra, dobrada em caso de reincidência. Além disso, artistas ou produtores condenados por “intolerância religiosa” não poderão ser contratados em eventos financiados pela prefeitura.

“Agora, vai pagar multa se botar roupa de Cristo, se colocar roupa de freira para ficar sambando no Carnaval. E artistas também que fizerem isso não serão contratados em eventos promovidos pela Prefeitura. Nós defendemos a fé cristã”, declarou o autor da proposta, em plenário.
A justificativa do projeto é o suposto combate à “cristofobia”, termo popularizado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em discursos oficiais, inclusive na ONU, em 2020, sem qualquer comprovação estatística de que esse fenômeno ocorra de forma sistêmica no Brasil.
Na prática, a lei aprovada em Salvador cria um campo de censura para manifestações artísticas e culturais, interferindo diretamente na liberdade de expressão e na pluralidade do Carnaval, a maior festa popular do país. Mais grave: confunde a necessária proteção contra intolerância religiosa — que já está prevista na Constituição e no Código Penal — com a blindagem de uma fé específica.
Ao contrário de combater preconceitos, a medida privilegia uma religião em detrimento de todas as outras, ferindo o princípio do Estado laico. Enquanto outras tradições religiosas, especialmente de matriz africana, continuam a sofrer ataques constantes e falta de proteção efetiva, o poder público opta por legislar sobre fantasias carnavalescas.
Prioridades invertidas
A aprovação do projeto ocorreu no mesmo dia em que a Câmara retirou da pauta temas urgentes para a população de Salvador, como o reajuste linear dos professores da rede municipal, que estiveram em greve por 74 dias em busca de melhores salários e condições dignas de trabalho.
Também foi adiada a discussão sobre medidas de proteção ambiental. No pacote da chamada “super pauta”, os vereadores aprovaram alterações na Lei de Uso e Ordenamento do Solo (LOUOS), flexibilizando regras para a especulação imobiliária e colocando em risco áreas sensíveis, como o Vale Encantado e fragmentos de Mata Atlântica nas ilhas da capital.
Em uma cidade que convive com enchentes, deslizamentos de encostas, falta de saneamento básico e altas temperaturas, a prioridade legislativa foi proibir trajes de freiras em conotação sensual durante o Carnaval.
Repercussão política e social
O projeto teve apoio da ampla maioria da Casa — 35 vereadores votaram a favor e apenas quatro contra, entre eles representantes do PSOL, PCdoB e PT. Para a base governista, a medida representaria um “marco histórico” para a defesa da fé cristã. Já críticos apontam que se trata de uma manobra política para agradar setores religiosos conservadores e gerar visibilidade midiática.
Artistas e organizações de direitos humanos alertam que a proposta abre precedentes perigosos para a criminalização da arte e da cultura popular, pois a própria Constituição já assegura liberdade de crença e penaliza atos de intolerância religiosa. O que este projeto faz é privilegiar um grupo religioso, censurando manifestações culturais legítimas.
Enquanto isso, parte da população ironiza a decisão: “Salvador tem problemas sérios de mobilidade, violência e moradia. Mas parece que a grande ameaça é alguém vestido de Jesus no Carnaval”, comentou Maria Lucy, moradora de Salvador e foliã declarada.
O texto aguarda agora a análise do prefeito Bruno Reis. Cabe a ele sancionar ou vetar a proposta. Caso entre em vigor, Salvador será a primeira cidade do Brasil a aprovar uma lei específica contra a chamada “cristofobia”, reforçando a pauta conservadora que mistura religião, política e moralidade em detrimento de políticas públicas estruturantes.
Com a decisão, a Câmara municipal dá um recado claro: em vez de priorizar educação, saúde, segurança ou meio ambiente, prefere legislar sobre a fantasia dos foliões. (MSN)