Atestado de óbito confirma existência de Mãe Bonifácia e anima pesquisadores

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Com uma casa localizada próximo ao córrego do Caixão na Cuiabá colonial do século XIX, a mulher conhecida como Mãe Bonifácia sempre chamou a atenção. Com muitas histórias e poucas documentações, a vida e a morte da mulher preta e livre em pleno período da escravidão despertaram curiosidades ao longo dos séculos. A matéria foi produzida por Midianews. Confira:

Uma pequena descoberta recente revive este mistério, após os pesquisadores Neila Barreto e Nedson Capistrano encontrarem, entre arquivos da Cúria Metropolitana de Cuiabá, um documento que reafirma a existência de Bonifácia por meio da comprovação de sua morte.

A descoberta veio por um acaso. Durante pesquisas acerca da história do Padre Ernesto Camilo Barreto, a escritora, jornalista e historiadora Neila Barreto analisou documentos presentes no copilado de arquivos sobre responsabilidade da Igreja Católica.

Entre inúmeras certidões de nascimento e casamento, Neila encontrou um documento, escrito pelo Cônego José Jacinto da Costa e Silva, que atestava o óbito de Bonifácia.

A descoberta dá margem ao interesse por novas pesquisas históricas sobre a mulher preta que ajudava escravos em fuga na década de 1860.

“Sempre vejo as pessoas escreverem sobre ela, mas percebo que é sempre uma narrativa de alguém que conta. Ainda não havia uma narrativa com documentos. Era uma vontade minha também de saber [sobre ela]. Quando encontrei, achei interessante dividir com as pessoas. A minha vontade era encontrar também o nascimento ou outros vestígios”, declara Neila Barreto.

O documento

Cuiabá de Antigamente/ Reprodução

Documento encontrado por pesquisadores

Escrito no ano de 1867, o documento de oito linhas descreve características importantes sobre a história da mulher que leva o nome de um dos principais parques de Cuiabá.

“Aos dezenove dias do mês de fevereiro de 1867, faleceu nesta paróchia com o sacramento da penitência, Bonifácia de 80 anos de idade, solteira, natural desta cidade, escrava de Dona Leopoldina da Gama e Silva, foi sepultada no cemitério. E para constar fiz este assento. Cônego José Jacinto da Costa e Silva”, diz o documento.

O memorialista Francisco Chagas participou do processo de divulgação do conteúdo em sua página Cuiabá de Antigamente, e da tradução do texto por meio da paleografia.

Ele revelou que a finalização da tradução do material levou em torno de uma semana.

“É muito complicado, porque as letras borram. Então, é preciso ler um documento anterior na mesma página para comparar os termos usados pelos sacerdotes da época”, explica.

O documento recentemente encontrado não relata o que ocasionou a morte de Bonifácia, mas fundamenta o período no qual ela viveu em Cuiabá.

Neila Barreto vê no achado a perspectiva de dar novos horizontes a uma história tão compartilhada entre os mato-grossenses, mas que até recentemente tinha poucas comprovações de existência.

“Com esse documento podemos dizer que não é mais mito. Ela é uma mulher que existiu. Torço para que outros pesquisadores encontrem mais sobre ela”.

“Na história aprendemos que a existência do documento é sempre o caminho de uma nova história”, acrescenta Barreto.

Estudos

Segundo o pesquisador e professor da Universidade Federal de Mato Grosso, Bruno Rodrigues, outro documento sobre a história de Bonifácia já havia sido citado em pesquisas realizadas pela escritora Luiza Volpato, em 1990. Trata-se de um ofício policial acerca da atuação da mulher no auxílio de fuga de escravos.

Já na década de 60 Francisco Ferreira Mendes publicou em sua coluna Lendas e Tradições Cuiabanas um texto que retrata pequenas informações sobre a história da mulher chamada de Mãe entre os escravos fugidos.

Segundo o texto publicado pelo jornalista no jornal O Estado de Mato Grosso, Mãe Bonifácia era uma mulher preta que vivia próximo ao Córrego do Caixão. Ela conseguia se sustentar por meio de aulas de costuras, dadas a moças nos anos de 1800.

“Ali residiu a preta Bonifácia, cuja crônica ouvida de um dos antigos cuiabanos, nascidos em 1880, ainda de memória lúcida, afirma não ter sido escrava e que vivia dos recursos, que os produtos da sua arte de ensinar crivo e trabalhos de ‘renda de bilro’ às moças da cidade e também da pequena hortaliça que cultivava lhe proporcionava”, diz trecho do documento.

Segundo o levantamento do jornalista, Bonifácia morreu vítima de uma varíola contraída de soldados mato-grossenses que retornavam da Guerra do Paraguai.

Conhecida pelos escravos como uma senhora preta, livre e disposta a ajudar os semelhantes que precisem de asilo durante a fuga em busca de liberdade, Bonifácia era peça fundamental para a resistência à escravidão.

“Desde as tradições orais, do século XIX e ao longo do século XX, muitas histórias circulam de que ela deixava água e alimento para esses escravos que fugiam. A Mãe Bonifácia está vinculada a essa resistência contra a escravidão. Porque o elemento da fuga é muito importante para pensarmos as características da resistência à escravidão em Mato Grosso. E a Mãe Bonifácia está vinculada a essa rede apoio que era muito comum”, declara o professor Bruno Rodrigues.

Figura central na luta por liberdade de centenas de pessoas escravizadas na região da Baixada Cuiabana, a mãe Bonifácia representa a injustiça social que uma parcela da população conviveu ao longo das décadas.

Para Bruno Rodrigues, a mulher preta que vivia entre a escravidão representava para os pretos da época a esperança para a liberdade, já na contemporaneidade a simbologia por trás da figura de Bonifácia resiste como uma das lideranças contra a injustiça social.

“Enquanto ela viveu, sua figura trazia a esperança. Nos tempos atuais, a história dela esta vinculada a injustiça, porque viveu uma injustiça e isso nos lembra que, ao avistar uma injustiça, devemos lutar contra, caso contrário estamos sendo coniventes”, diz Bruno.

Como uma tentativa de manter a memória de Bonifácia viva, o então governador Dante de Oliveira criou o parque estadual “Mãe Bonifácia” no ano de 2000. O responsável pela nomeação foi o arquiteto Ademar Poppi.

No Centro do parque há uma estatua de 3 metros de altura, feita de concreto, pedra e mármore sintético. A obra do artista plástico Jonas Corrêa busca eternizar Mãe Bonifácia dando auxilio a um escravo em fuga.

Fonte: Midianews